O partido do Estado (e os meus heróis)
Num país com 10 milhões de habitantes, pelo menos 6 milhões beneficiam de transferências directas do Estado central.
Neste dia em que centenas de milhares de funcionários públicos vão poder usufruir de mais uma reversão no corte de salários que lhe foi aplicado pelo anterior governo, eu gostava de prestar a minha homenagem pública a todos os professores, todos os médicos, todos os juízes, todos os polícias, todos os militares, todos os reformados que em Outubro votaram na coligação PSD-CDS, mesmo sabendo que a esquerda unida lhes prometia mais dinheiro caso vencesse as eleições. Todas essas pessoas, e foram muitas, votaram contra o seu interesse próprio em nome do interesse do país – são os meus heróis.
Segundo os números mais recentes da Pordata, existem em Portugal mais de 3,6 milhões de pensionistas. Mais de 650 mil funcionários públicos. Outros tantos desempregados. Perto de 300 mil beneficiários do rendimento social de inserção. Somando estes quatro números deparamo-nos com 5,2 milhões de pessoas. E se a estes 5,2 milhões somarmos filhos menores e familiares dependentes, ultrapassamos facilmente os 6 milhões que Medina Carreira costuma citar com regularidade. Fixem bem o número, porque ele é o mais importante para explicar Portugal e a sua paralisia: num país com 10 milhões de habitantes, pelo menos 6 milhões beneficiam de transferências directas do Estado central.
Daí Medina Carreira falar, e bem, do partido do Estado, uma imenso centrão que tem os seus rendimentos dependentes do bolo orçamental, nascido do fortalecimento da classe média em tempos de vacas gordas. O que fazer agora que as vacas emagreceram, ou que não estão a engordar à velocidade necessária, é um dilema não apenas de Portugal mas de todos os países desenvolvidos. O que aqui parece existir mais do que em outros lugares é uma inconsciência disseminada, que impede demasiada gente de ver que qualquer regoverno despesista está absolutamente condenado ao desastre. Claro que há uma tese mais perniciosa: demasiada gente não vê simplesmente porque não tem qualquer interesse em ver.
Se todos aqueles 5,2 milhões de adultos que hoje usufruem de transferências directas do Estado tivessem ido às urnas em Outubro para colocar uma cruz nos quadradinhos do PS, do Bloco e do PCP eles teriam tomado uma decisão racional. Na estrita lógica do funcionário público, e se por “decisão racional” entendermos o cumprimento dos seus interesses mais imediatos, é evidente que quem recebe um salário do Estado tem toda a vantagem em votar nos partidos que asseguram que a despesa pública não só é para manter como até é para aumentar, de modo a estimular o consumo interno. Quando há partidos que prometem mais dinheiro no nosso bolso, e partidos que vêm de quatro anos a tirar-nos dinheiro do bolso, a escolha não parece difícil.
Nas últimas legislativas, PS, Bloco e PCP obtiveram cerca de 2,75 milhões de votos, com uma abstenção de 45%. Se distribuirmos os abstencionistas, chegamos aos 4 milhões. O que significa – e essa, sim, é a surpresa – que ainda há pelo menos 1,2 milhões de funcionários públicos, de reformados, de desempregados que, após quatro anos de cortes violentos, preferiram abster-se ou votar na direita, mesmo que a promessa que lhes estava a ser feita fosse uma reversão muito mais lenta dos seus salários e das suas reformas. É por isso que esses homens e essas mulheres são os meus heróis. E é por isso que no dia em que o seu ordenado reaparece com mais uns euros que eles sabem que o país não sabe como pagar, eu lhes tiro o meu chapéu.