O dia em que Marcelo será importante
É aí, nesse momento, se Costa cair e Passos não for capaz de se levantar, que o papel de Marcelo Rebelo de Sousa pode ganhar uma importância ímpar.
Andar a discutir quão amigo Marcelo Rebelo de Sousa vai ser de António Costa e quão sinceras são as juras de amor perfeito que têm lançado um ao outro pode ser um exercício divertido – mas ele é bastante inútil. O pescoço de António Costa não está nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa, nem irá estar nos próximos tempos. Costa está refém do Parlamento, da solidez dos acordos com a esquerda, da paciência de Bruxelas, dos humores das agências de rating e de que a economia portuguesa, tal como o manto de D. Isabel, produza um milagre das rosas. Nada disso depende de Marcelo.
A importância do novo presidente não está numa hipotética queda de António Costa, para a qual dificilmente será tido ou achado, mas naquilo que acontecerá a seguir: a forte possibilidade de uma situação de impasse político, com o país extremado e dividido ao meio após novas legislativas que não irão dar a maioria absoluta nem ao PSD, nem ao PS. O famoso muro de António Costa, como vai sendo óbvio para todos, não caiu – ele deslocou-se de um lado para o outro. O muro que dividia CDS, PSD e PS do PCP e do Bloco passou agora a dividir CDS e PSD do PS, do PCP e do Bloco. Costa saltou o muro para o lado da esquerda e assim rachou Portugal em duas partes, que não serão fáceis de colar.
É aí, nesse momento – apontemos para o fim de 2017, princípio de 2018 –, se Costa cair e Passos não for capaz de se levantar, que o papel de Marcelo Rebelo de Sousa pode ganhar uma importância ímpar na história da presidência da República portuguesa. Quando olhamos para o artigo 120 da Constituição, onde se descreve o papel do presidente no sistema político nacional, lemos: “O Presidente da República garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas.” Isto é suficientemente aberto para permitir infinitas interpretações, algumas das quais nos reenviam para um papel do presidente muitíssimo mais relevante e interventivo do que aquele que foi prática até hoje.
Poderá Marcelo vir a ser esse género de presidente? Ele não deu essa indicação na campanha, onde se colocou do lado da tradição presidencial portuguesa, dentro dos estritos limites de uma magistratura de influência. Mas o seu discurso de vitória já foi um pouco diferente, apresentando-se como uma espécie de 112 do regime, para onde cada um de nós pode telefonar em caso de emergência e aflição. Liguem, liguem, que logo o professor Marcelo aportará com as suas pílulas para consolar os oprimidos e “cicatrizar as feridas”. Ora, isto remete para uma ideia de pater familias que dá para tudo – se a “ferida” for o próprio regime, até onde estará ele disposto a ir para a “cicatrizar”?
Não é possível responder a essa pergunta neste momento. Mas podemos ter, pelo menos, esta certeza: Marcelo chega a Belém com uma legitimidade única, não por ter tido uma vitória estrondosa, mas por ter tido uma vitória absolutamente solitária. Sem partidos. Sem cartazes. Sem dinheiro que não fosse seu ou da sua família. E sem dizer nada de relevante sobre o papel do presidente. Os portugueses não lhe ofereceram apenas um mandato de cinco anos – ofereceram-lhe um cheque em branco, para ele movimentar quando bem lhe apetecer. Aos 67 anos, está sentado na cadeira dos seus sonhos, na época mais conturbada da nossa democracia desde 1975. Esperemos que se saia melhor do que o outro Marcelo, e que consiga estar à altura do seu tempo.