A cada um segundo a sua paranóia
Decididamente por aquelas bandas há gente apostada em replicar a receita que tão bons resultados tem dado ao mundo.
Estava eu posto em sossego quando o telemóvel me alertou: “Costa usa definição de comunismo para descrever a sua sociedade ideal”.
Alvoroçado, tentei identificar que página das “365 Receitas de Criancinhas para o seu Pequeno-Almoço” teria António Costa mencionado desta vez. Fui ver: José Manuel Fernandes, ex-diretor do Público e agora no Observador, revelava ao mundo que o primeiro-ministro de Portugal dissera num debate parlamentar que “uma sociedade decente é uma sociedade onde cada um contribui para o bem comum de acordo com as suas capacidades, e cada um recebe de acordo com as suas necessidades”. Senti-me espoliado dos três segundos que demorei a perceber que tinha caído numa armadilha para caçar cliques na internet.
Passado dois dias, decidi fazer qualquer coisa de útil com o tempo perdido e fui procurar de novo o artigo. Corri a página de opinião do Observador de cima a baixo e não achava o texto de José Manuel Fernandes. O que vi, porém, era preocupante: segundo uma boa maioria dos cronistas da casa, está em curso no nosso país uma guerra contra a classe média, tal como definida pelos seguintes critérios: 1) possui imobiliário no valor de mais de um milhão de euros, 2) detém conta bancária com mais de 50 mil euros depositados, e 3) é proprietária de um ou mais colégios privados. Destaco dois artigos de historiadores, por acreditar que os meus colegas devem contribuir para o contexto e a inteligibilidade do discurso na nossa sociedade. O artigo mais recente de Fátima Bonifácio tinha por título “Ódio de Classe” (facto curioso: num arco de quarenta anos os ex-esquerdistas podem sempre reciclar os mesmos títulos que usavam dantes mas agora na direção oposta). O artigo mais recente de Rui Ramos tinha por singelo título “O Assassinato das classes médias”. Sim. Assassinato. Talvez por aparecer no dicionário antes de “Genocídio”.
Decididamente por aquelas bandas há gente apostada em replicar a receita que tão bons resultados tem dado no mundo atual: de cada um segundo o seu preconceito, a cada um segundo a sua paranóia.
Nos EUA, metade da população está convencida de que Obama é um muçulmano nascido no Quénia. Por cá, o artigo de José Manuel Fernandes termina com esta amorosa referência: “recorde-se que António Costa é filho de Orlando Costa, escritor e militante do Partido Comunista, e de Maria Antónia Palla, jornalista que sempre foi próxima do PS”. Quando redescobri o texto verifiquei que afinal ele não estava na secção onde eu procurava, de opinião. Por incrível que pareça, estava nas notícias.
Tenho então uma notícia para dar a José Manuel Fernandes. A frase que citou de António Costa foi de facto também escrita por Marx. Mas antes disso foi usada pelo reformista Louis Blanc, pelo filósofo iluminista Étienne Morelly, pelo autor dos Atos dos Apóstolos na Bíblia e por Jesus Cristo na Parábola dos Talentos. Coisas que José Manuel Fernandes poderia ter descoberto na Wikipédia. Que, evidentemente, ele nunca usa: a Wikipédia só pode ser comunista. Afinal, é escrita por cada um segundo as suas possibilidades e lida por cada um segundo as suas necessidades.