E se parássemos para pensar?
Os impostos que pagamos são para manter um ensino público que garanta da melhor forma possível um princípio base das democracias europeias: a igualdade de oportunidades
1.Há quinze dias, Manuela Ferreira Leite disse no seu comentário na TVI que não percebia qual era o problema da “guerra” entre os colégios privados subsidiados pelo Estado para suprir falhas do ensino público e a decisão do Governo de dispensar alguns. Como o que disse ia contra a corrente, não sei se o seu pensamento ficou absolutamente claro. Mas é a mais pura das verdades que, mesmo assim, não impediu uma polémica em que já ninguém sabe exactamente o que está em causa. Se uma questão ideológica sobre a melhor forma de garantir a educação para todos (Estado ou a compra de serviços a privados) ou uma mera questão de interpretação da lei.
O ruído foi deixando o essencial de fora. Basta estar atento aos cartazes que aparecem nas manifestações para perceber que há nisto tudo uma enorme confusão. “Pago impostos, tenho direito a escolher a escola dos meus filhos”, resume perfeitamente a confusão instalada no debate. Não. Não tem esse direito. Os impostos que pagamos são para manter um ensino público que garanta da melhor forma possível um princípio base das democracias europeias: a igualdade de oportunidades. Sabemos que a realidade não permite cumprir totalmente este princípio, porque nele interferem problemas de discriminação social difíceis de resolver. Mas também sabemos que até se provar o contrário esta é a melhor forma de manter esse princípio.
Qualquer família é livre de escolher a escola dos filhos: pública e, portanto, gratuita; privada e, portanto, pagando as propinas devidas. Lembrei-me, ao ver este cartaz, de outro caso idêntico que se passou há algum tempo e que revela o mesmo espírito, quando o Governo, em seu pleno direito, decidiu fechar a Maternidade Alfredo da Costa e transferir para a Estefânia e Santa Maria os seus serviços, aliás de altíssima qualidade. Num pequeno ajuntamento à porta da maternidade (muitos só eram mesmo os jornalistas), um outro cartaz ficou-me na memória: “Tenho direito ao lugar onde nasci”. Mais um engano total. Não tem. Tem apenas direito a receber a melhor assistência possível numa maternidade pública. Aliás, se levássemos em consideração que metade da população de Lisboa é natural de São Sebastião da Pedreira porque nasceu na MAC, imagine-se o que seria esta manifestação se a reivindicação pegasse. O que foi ainda mais perturbador foi o facto de um tribunal de Lisboa ter aceite uma providência cautelar para suspender a decisão do Governo, como se não se tratasse de um mero acto de gestão, de resto bem fundamentado nas normas mais avançadas: a conveniência de os partos decorrerem junto de um hospital com todos os recursos disponíveis, caso haja complicações, não com a criança, mas com a mãe.
Outro caso paradigmático foi o da concentração das maternidades em centros hospitalares mais completos, de forma a que as crianças nasçam em serviços com mais de mil partos por ano, ou seja, com a experiência e a capacidade necessárias para garantir a máxima segurança. É, aliás, uma norma recomendada pela OMS. Durante meses, o ministro da Saúde, Correia de Campos, enfrentou manifestações ruidosas em todos os sítios afectados por esta alteração. Não me lembro exactamente dos cartazes mas os jornais davam voz às mães que queriam dar à luz em território nacional, e não em Badajoz, como estava previsto para o interior alentejano. Por azar, houve uma criança que nasceu na ambulância a caminho da maternidade espanhola. Foi um escândalo. De repente, o problema desapareceu. Depreende-se que tudo deve estar a correr bem, e a única referência que vi a este episódio algum tempo depois foi uma mãe, entrevistada em Badajoz, a dizer que tinha gostado imenso do serviço, que o hospital era excelente, etc.. Com tudo o que já nos aconteceu, ainda conseguimos manter um SNS de grande qualidade, que garante aquilo que do meu ponto de vista é o que melhor garante uma sociedade coesa e que quer ser justa, sobretudo quando se trata do valor fundamental da vida humana.
Vai restar alguma coisa desta gritaria sobre as escolas privadas que o Estado vai deixar de financiar? Duvido. A não ser a busca de uma primeira divergência entre Marcelo e Costa, o novo passatempo nacional. Mesmo assim, o Presidente teve de colocar os pontos nos ii em relação ao comunicado difundido pelo Movimento de Defesa da Escola Ponto, que recebeu em Belém e que utilizou indevidamente frases suas.
2. A direita, com toda a legitimidade, inoculou no debate as suas ideias sobre o Estado, segundo as quais é preciso garantir o serviço, mas não o seu fornecimento, que pode ser integralmente privado. É uma velha ideia que até pode parecer apelativa mas que, por alguma razão, ainda não foi levada até ao fim por nenhuma democracia europeia ou, sequer, nos EUA. Qual seria a escola privada que estaria em condições de prestar o serviço de uma escola pública, por exemplo, num dos bairros mais pobres dos arredores de Lisboa, onde muitos dos alunos são de origem africana? Já fui a uma dessas escolas para falar da Europa e saí de lá com uma admiração enorme por quem a dirige e por quem lá ensina. Poderiam ir todos inscrever-se no São João de Brito com as propinas pagas pelo Estado? Sabemos a resposta. Essa liberdade de escolha de que tanto se fala esbarra com a vontade dos colégios privados e com profundas desigualdades sociais. O Estado teria de superar essa falha privada, abrindo as portas a serviços públicos feitos apenas para os pobres. Resultado? Teríamos de ir até outros continentes menos desenvolvidos para os encontrar. Finalmente, os rankings mostram-nos que escola privada não significa melhor qualidade. Há de tudo. Todas as democracias, sem excepção, se debatem com os mesmos problemas e os vão resolvendo à sua maneira.
3.Vale a pena olhar para o que se está a passar na Suécia, um país que já tinha escolaridade obrigatória no final do seculo XIX e que, com os outros nórdicos, era dado como um exemplo de sucesso na educação. O que hoje se sabe é que a Suécia caiu drasticamente nos rankings do PISA, obrigando a sociedade a fazer um grande debate sobre o que aconteceu. Pode haver muitas razões, mas uma delas está a merecer a máxima atenção. Nos anos 90, o sistema foi reformado de alto a baixo, transferindo para as escolas privadas a totalidade do ensino, devidamente financiado pelo Estado. São as chamadas free schools (escolas privadas financiadas directamente aos alunos, que podem escolher a que quiserem), que o anterior Governo britânico (liderado por Cameron) andou a estudar in loco para seguir o mesmo caminho, mas que agora os resultados suecos estão a pôr em causa. No Reino Unido, as free schools que já foram criadas não podem gerar lucro (e não consta que a cultura britânica tenha horror a tal coisa). Na Suécia podem. Dizia o ministro da Educação sueco, há já algum tempo, ao Guardian, que não haveria uma única causa para o fracasso, mas uma combinação que “ajudou a fragmentar o sistema escolar” e abriu as portas a uma maior desigualdade. “O sistema escolar não é um mercado em que cada um tem as mesmas possibilidades e a mesma informação”, disse ele. “Verificou-se que alguns pais, os mais educados e com maios recursos, são quem tem a possibilidade de exercer a escolha”. Estamos a falar de um país muito rico e muito educado.