Cosmofobia

O chocante assassinato de Jo Cox deve ser para todos nós um separador de águas.

Numa semana atroz, o assassinato da deputada trabalhista britânica Jo Cox, esfaqueada e baleada por um homem com vínculos à extrema-direita nacionalista, é um símbolo de algo que não é novo mas que arrisca tornar-se na definição do nosso tempo.

O homem que matou Jo Cox era certamente um xenófobo, mas atacou uma mulher do seu país. É muito provavelmente um eurofóbico, mas quem ele matou foi uma deputada eleita para o Parlamento britânico – cuja supremacia os eurofóbicos juram defender. Por que matou ele então Jo Cox? Ele próprio o disse na primeira oportunidade que teve para falar em tribunal, quando lhe perguntaram o seu nome: “O meu nome é 'morte aos traidores e liberdade para a Grã-Bretanha'”.

Jo Cox foi assassinada então porque, para o seu assassino, ela seria uma traidora à pátria. E não é difícil perceber que a sua “traição” estaria nas causas que ela defendia: a implementação de políticas sociais de compensação da imigração em vez de um simples fechar de fronteiras; o acolhimento das crianças refugiadas de guerra; e, crucialmente, a permanência do Reino Unido na União Europeia.

As razões de um fanático a esse fanático pertencem. Mas do ambiente em que ele se move somos todos responsáveis, por ação e por omissão. A esse fenómeno que não é novo mas cada vez mais prevalente, se lhe fôssemos a atribuir um nome, deveríamos chamar “cosmofobia”: a aversão àquilo que é cosmopolita ou a quem defende o cosmopolitismo político, ou seja, a cidadania global e a democracia também para lá das fronteiras nacionais. Jo Cox era britânica; não foi assassinada por ser imigrante mas por defender os imigrantes. Jo Cox era deputada de Westminster; presumivelmente, não foi assassinada por ser uma “tecnocrata de Bruxelas” mas por defender que o Reino Unido deveria permanecer na UE.

Para entender como este fenómeno está à frente dos nossos olhos sem que o denunciemos não é preciso lembrar que em Portugal, ainda há poucos meses, foram afixados centenas de cartazes com a frase “Morte aos Traidores” e que o assunto foi tratado como se não passasse de um fait-divers. Basta ver a forma como são tratados no debate público e nas redes sociais aqueles que valorizam a UE (tal como a criticam quando tem de ser criticada) não alinhando forçosamente no discurso da vitimização nacional. Basta ver a forma como se ganha votos e aplausos fáceis carregando nas tintas da “chantagem” e da “ingerência” europeia, do “inferno” europeu de que é preciso fugir a todo o custo. Basta ver a forma como foi dividida a política em dois campos, até por certos progressistas, e que quem defende a UE não só não é considerado patriota, como pode ser desleal, para não dizer um vendido. Esse discurso chegou ao extremo na feíssima campanha britânica, mas está disseminado em todos os países do mundo, e certamente em Portugal também.

O chocante assassinato de Jo Cox deve ser para todos nós um separador de águas: esta violência retórica não pode mais ser ignorada e deve ser denunciada a cada passo. “Cidadãos do mundo” de todo o mundo, uni-vos!

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