Londres é nossa
Era mesmo esta oportunidade que a esquerda anti-UE queria? Um Brexit que no mínimo é irresponsável, no máximo fascista?
1. Não quero que a UE acabe, não quero sair da UE e gostaria que o Reino Unido não saísse. Se o "Brexit" ainda é reversível, valerá a pena pensar nisso. Na semana pós-referendo os demónios multiplicaram-se, o assunto é de todos, não apenas britânicos. Actos racistas nas ruas e nos transportes públicos contra qualquer aparente “estrangeiro” quintuplicaram. O Partido Conservador lembra a decadência do Império Romano, com os cabecilhas do "Brexit" a apunhalarem-se, Neros com sotaque de Eton. O Partido Trabalhista tem um líder tão pouco convicto do Remain que só ajudou o Leave e teima em manter-se no posto, apesar de toda a gente o empurrar. Fortes, triunfais, enfim à vontade para a sua Parada do Orgulho Xenófobo, estão os ultra-nacionalistas. Entretanto, de Trafalgar Square à Escócia, as ruas encheram-se de protestos anti-"Brexit" e anti-racistas, quatro milhões de britânicos até agora pediram um novo referendo (o que seria péssima ideia, mas é um sinal revelador). Se o referendo, por si, não é vinculativo, e a maioria do Parlamento é anti-"Brexit", não será impossível que seja vetado. Por alguma razão John Kerry sugeriu que o "Brexit" ainda tem retorno, e que Cameron está incapaz de lidar com o desastre que provocou.
2. Não sou contra o euro nem “a perda de soberania nacional”. Só sei o que é soberania individual, e não sei porque é que o nacional há-de ser bom. Acredito que é suposto a UE representar democracia, direitos humanos, diluição de fronteiras, livre circulação de pessoas, abertura a imigrantes e refugiados, empenho contra o que violenta gente mundo fora, uma inspiração para a paz, por tudo o que a Europa sabe da guerra. O que me preocupa na UE não é que ela seja o que se propõe ser, mas que não o seja bastante, ou seja mesmo o oposto: perdulária nas aparências, cobarde nos momentos decisivos, burocrática, prepotente, discriminatória. E é bom que quem está na UE não páre de lhe exigir que esteja à altura, porque se aumentaram as razões para a criticar também aumentou a necessidade que temos dela. A violência ficou demasiado volátil para a irresponsabilidade de deitar fora a UE, acicatando um regresso nacionalista ao nós e eles: os bárbaros.
3. Eu era adolescente quando Portugal entrou na UE. Logo que pude atravessei a Europa até Moscovo, as coisas mudavam quando o comboio chegava à Hungria ou à Checoslováquia, e mais ainda à URSS, onde só se podia entrar “por convite” prévio. Mas o Muro de Berlim acabara de cair, em breve a Europa de Leste estaria na UE, quem sabe a Rússia seria enfim democrática. Para a minha geração, a primeira em Portugal após a ditadura salazarista e a guerra colonial em África, democracia, liberdade, independência eram lutas recentes, que haviam custado vidas. Tivemos a sorte de crescer num país que se abria, até ao ponto em que já não pensaríamos como cidadãos de um só país, porque seríamos do mundo. Pouco depois, a Jugoslávia desfez-se numa barbárie nacionalista. A Rússia tornou-se um casino de corruptos até ser domada pelo novo czar, o hipernacionalista Putin. E, em 2016, a Hungria é um muro racista na UE, a França pulula de Le Pens, a Áustria teme a extrema-direita, enquanto milhões morrem no Médio Oriente por não poderem circular. O mundo é bem mais negro do que imaginámos quando Portugal entrou na UE. Mas demasiada gente deu a vida para trocarmos o mundo por um só país. Se a UE pode, deve, ser muito melhor, estar fora da UE será de certeza pior.
4. Fui a Londres mal atravessei a Europa, há 25 anos que lá vou quando posso, e, tirando Stratford-upon-Avon, não conheço mais nada do Reino Unido. Mantenho uma lista de destinos, do Yorkshire à Escócia, mas ainda não calhou. Em parte, creio, porque nunca fui a Londres pensando que ia ao Reino Unido. Londres é, em si, um país sem nacionalidade, que se tornou único graças ao que é de todos. Não deixa de ser inglesa por isso, e por ser inglesa é diferente de Nova Iorque ou Paris, mas não é por ser inglesa que é bom ir lá. É porque, sendo inglesa, é indiana, africana, caribenha, árabe. É porque em cada ida à Daunt Books achei livros antigos sobre o Afeganistão, livros novos sobre a Síria. É porque aprendi mais sobre colonialismo nas ruas e nos museus de Londres do que em toda a minha vida escolar portuguesa. De Hampstead a Bloombsbury, dos frisos no Museu Britânico a Brixton ou Hackney, Londres é o que os ingleses são, o que os ingleses roubaram e o que todos os não-ingleses trazem, um prisma monumental para ver passado, presente e futuro. Mais cosmopolita do que Paris, mais antiga do que Nova Iorque, é a grande cidade do mundo. A anti-"Brexit".
5. Aberta a Caixa de Pandora do racismo celebratório, um negro sai à rua e ouve fuck off. Hooligans à solta, brancos a cuspirem no chão à passagem de um não-branco, ovos contra muçulmanas, cartazes a dizer que os refugiados não são bem-vindos, pedindo a repatriação. Tudo isto aconteceu nos últimos dias pelo Reino Unido, enquanto os tories se esgadanhavam, roubando a lira do império uns aos outros. E onde está a esquerda entretanto? Era mesmo esta oportunidade que a esquerda anti-UE queria, ou achava que podia ser um mal menor? Um "Brexit" que no mínimo é irresponsável, no máximo fascista? Em Portugal, de resto, entre uma direita e um centro que não admitem o retrato completo do que foi o Império Português (com os seus quase seis milhões de escravos, o seu extermínio indígena, a sua exploração sem construção, que só no Brasil durou mais de trezentos anos), e uma esquerda que apenas vê bem ao perto, e parece brincar às casinhas, o nacionalismo pode servir-se de quase tudo e do seu contrário. A UE não é da troika nem de Schäuble, antes de mais é uma ideia. E quando desistirmos dessa ideia será só dos funcionários, aqueles com que se faz a banalidade do mal.
6. Escrevo de Jerusalém, onde uma parte das pessoas tem um país à custa da outra parte não ter um país, e nisto terem passado décadas, sem que o mundo, incluindo a UE, tenha feito algo decisivo. E à volta de Jerusalém só piora, mal se entra na Cisjordânia, e sobretudo em Gaza, onde é difícil entrar, e de onde sobretudo ninguém sai. Não conheço outro lugar do mundo onde tanta gente esteja presa há tanto tempo. Só a existência de Gaza devia ser a mais antiga vergonha da UE, ingleses e franceses à cabeça, como ex-colonizadores. Quem tem espaço para Gaza quando a UE está ocupada com a própria sobrevivência? Faz bem em estar, mas, se quero que a UE sobreviva para melhor, é também para que Gaza seja um assunto da UE: porque é um assunto da UE. Todos os palestinianos que conheço querem um país para deixarem de ser de país nenhum. Há uma diferença entre ser de país nenhum e ser do mundo. É a diferença entre a morte a vida, entre estar subjugado e poder decidir. A melhor razão para um país existir é que ninguém nasça reduzido a ser de país nenhum. Os meus grandes amigos palestinianos são uma família de Gaza, pai, mãe, três filhas, vi-as crescer. A única coisa que querem é: sair para o mundo.
7. Se o "Brexit" estivesse nas mãos dos eleitores jovens, não haveria "Brexit", e isso dá-me esperança. Menos mau que o racismo seja mais velho do que novo. A minha afilhada lisboeta acaba de ser aceite na Universidade de Edimburgo para um mestrado sobre Médio Oriente em que metade do tempo curricular será em árabe, que ela começou por aprender num semestre nos EUA, e depois num semestre em Ramallah, tudo isto a trabalhar nos intervalos para juntar dinheiro. É bom que a Escócia a trate bem, será desta que lá vou.