A sociedade aberta e os seus inimigos

Quando a notícia me chegou, estava então a leccionar na Universidade de Brown, nos EUA, apressei-me a voar para Londres e ainda pude estar no funeral de Popper. Nessa noite, viajando de carro com Ralf Dahrendorf entre Londres e Oxford, mantivemos longos períodos de silêncio. O nosso herói tinha partido. Mas o seu exemplo e os seus ensinamentos ficavam connosco.

Dei conta do funeral de Popper neste mesmo jornal, onde também era cronista naquela data. Talvez não seja despropositado recordar hoje o grande filósofo austro-britânico e algum do vasto legado intelectual que nos deixou.

Embora Popper tenha sido sobretudo um filósofo da ciência e do conhecimento, o seu livro mais famoso foi A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos — uma obra de filosofia política que escreveu entre 1938 e 1943, durante o exílio voluntário na Nova Zelândia, e que apresentou como o seu “esforço de guerra” em defesa das democracias ocidentais contra os totalitarismos nazi e comunista.

O livro, originalmente publicado em língua inglesa em 1945, é geralmente apontado como um dos mais influentes do século XX. Entre nós, foi inicialmente publicado em 1990, pela Editorial Fragmentos, e foi reeditado pelas Edições 70 em 2012.

A Sociedade Aberta foi aplaudida por filósofos, políticos e estadistas de várias inclinações políticas democráticas, à esquerda e à direita. Em Portugal, Mário Soares e Diogo Freitas do Amaral, declararam-se admiradores do velho filósofo. Tive o privilégio de acompanhar cada um deles em visitas privadas a casa de Karl Popper, em Kenley, perto de Londres, em 1992 e 1993, respectivamente.

O impacto imediato da publicação de A Sociedade Aberta e os seus Inimigos centrou-se na sua crítica demolidora do marxismo, em nome da tradição da liberdade e responsabilidade pessoal.

Em primeiro lugar, Popper reconheceu e elogiou o impulso moral humanitário e “melhorista” subjacente à doutrina de Marx, o impulso para melhorar a sorte dos nossos semelhantes e aliviar o sofrimento humano susceptível de ser evitado. Mas, simultaneamente, acusou a doutrina de Marx de ter abandonado e até “atraiçoado” esse impulso moral humanitário que lhe dera origem, em troca de uma ideologia dogmática e destituída de moral, ou moralmente relativista. Por outras palavras, Karl Popper condenou a mensagem moral de Marx em nome dos próprios princípios morais humanitários de que Marx se reclamara.

Em segundo lugar, Popper dissecou o conteúdo substantivo da doutrina de Marx, agora separada do seu impulso moral, e acusou-a de reaccionária. Colocou-a sem hesitações ao lado das ideologias contrárias à sociedade aberta, as ideologias totalitárias, de esquerda ou de direita, como o nacional-socialismo, ou nazismo, e o fascismo, que “continuam a tentar derrubar a civilização e regressar ao tribalismo”. Por outras palavras, Karl Popper condenou a doutrina de Marx em nome da ideia de progresso de que Marx se reclamara.

Em terceiro lugar, Popper criticou duramente a ilusão do “socialismo científico” que Marx acabara por colocar no centro da sua doutrina. Popper mostrou que o “socialismo científico" simplesmente não existe. Trata-se de uma superstição primitiva e profundamente contrária à atitude científica, uma superstição dos que “acreditam que sabem, sem saberem que acreditam”, a que Popper chamou de historicismo. Por outras palavras, Popper criticou a doutrina de Marx em nome da atitude científica de que este se reclamara.

Para Popper, o conflito que no século XX opôs as democracias liberais do Ocidente aos totalitarismos nazi e comunista foi, nos seus traços essenciais, um conflito semelhante ao que opôs a democracia ateniense à tirania espartana, no século V aC. As modernas democracias liberais são herdeiras de um longo processo de abertura gradual das sociedades fechadas, tribais e colectivistas do passado – processo que terá tido início em Atenas e noutras civilizações marítimas e comerciais como a da Suméria, e que recebeu um contributo decisivo do Cristianismo.

É esta sociedade aberta que está hoje de novo sob ataque cerrado do fundamentalismo islâmico e, em grau menor, da autocracia russa. Resta saber se ainda queremos defendê-la, ou se vamos render-nos à vulgata politicamente correcta, segundo a qual a culpa dos ataques que sofremos é sempre de nós próprios — da sociedade aberta do Ocidente, a que os seus inimigos chamam capitalista e imperialista.

 

 

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