Biblioteca Municipal de Almada: ponto de encontro
Existe a preocupação de tornar a biblioteca um espaço vivo e dinâmico que se deve adaptar às necessidades dos utilizadores. Paralelamente, há uma aposta nos jogos de tabuleiro.
Quando visitei a Biblioteca Municipal de Almada, duas funcionárias da instituição encontravam-se a fazer um levantamento de livros para eliminar. O meu olhar de espanto motivou uma explicação imediata da bibliotecária Rute Moura, que me guiava pelo espaço.
"Estamos a proceder à eliminação de livros e outros documentos que já não se encontram em bom estado, que se encontram desatualizados ou que não são requisitados há mais de cinco anos», esclareceu. Para Rute Moura, a atualização do acervo é essencial: "Verificamos também que existem muitos livros repetidos. Estamos a eliminá-los do nosso catálogo, mas a dar-lhes uma nova vida disponibilizando-os nos diversos pontos de leitura que estão a ser criados pela cidade. Se não os eliminarmos, a biblioteca passa a ser apenas uma coleção de recursos. Ou seja, deixa de ser relevante para a comunidade, porque até podemos ter títulos recentes e relevantes, mas perdem-se no meio de todos os outros. Uma coleção quer-se dinâmica, significando este dinamismo uma tentativa de satisfazer as necessidades de quem nos visita."
À medida que a minha anfitriã falava, percebia-se a preocupação de tornar a biblioteca como um espaço vivo e dinâmico que deve se adaptar às necessidades dos seus utilizadores. Com um dinamismo que entusiasma, prossegue: "Por outro lado, estamos a pensar como havemos de definir cotas mais simples e amigáveis para os utilizadores. Não só porque permite uma maior autonomia, mas também porque contribui para a biblioteca enquanto verdadeiro espaço público. Por exemplo, se alguém se sentir constrangido por querer consultar um livro polémico, não terá de o pedir no balcão, podendo consultá-lo com maior recato."
Essa abordagem inclusiva transforma a biblioteca num verdadeiro centro de convivência. "Numa biblioteca partilhada por tanta gente, é impossível ter silêncio absoluto. Na sala infantil da Biblioteca Central de Almada, os adolescentes estão confortáveis porque não há silêncio. Também colocámos mesas e cadeiras no átrio para as pessoas lerem os periódicos, estudarem em grupo ou apenas conversarem", informa Rute Moura, reforçando que o espaço deve ser acolhedor e acessível a todos, informal e gratuito, em suma, "um ponto de encontro importante para as pessoas".
A bibliotecária também partilha do desejo de desconstruir a ideia — que tenho percebido em muitas bibliotecas visitadas —, de que a biblioteca é um espaço de silêncio e para intelectuais. "A biblioteca é uma casa onde cabe toda a gente", afirma, citando o livro de Mafalda Milhões.
É com esse objetivo em mente que esta biblioteca tem desenvolvido uma programação diversificada que procura atender a várias comunidades. Ao sábado, por exemplo, trocam-se cromos. Paralelamente, há uma aposta nos jogos de tabuleiro com vista à potencialização, entre outros aspetos, do convívio entre as pessoas e as famílias. "Isto é muito importante nesta época em que os smartphones ganham a corrida da nossa atenção. Estamos a emprestar jogos de tabuleiro e vamos promover fins-de-semana dedicados. Também criámos um espaço para as crianças brincarem, informal e seguro!", exclama Rute Moura, visivelmente entusiasmada com as novas iniciativas.
Todavia, a Biblioteca Municipal de Almada não esquece a promoção da leitura, um dos seus pilares. "Na verdade, somos a única entidade pública a promover a leitura por prazer. Em Almada, existe uma forte componente de poesia nos cafés, por isso estamos a reforçar a nossa coleção nesse género literário e a divulgá-la de modo que chegue a um maior número de pessoas. E temos quatro comunidades de leitores, dedicadas ao público adulto, jovem adulto, e à literatura de viagens", detalha. Além disso, a biblioteca tem-se dedicado à construção de comunidades de leitores e à definição de guias de leitura com temas específicos, como por exemplo "Ser zen e feliz" ou "Sono, soninho", com sugestões de leitura para pais e filhos.
Neste espaço realiza-se ainda o projeto ILD@, relacionado com a literacia digital, que disponibiliza cursos básicos de informática e uma ajuda rápida às pessoas que precisem de resolver alguma dificuldade na utilização do computador, tablet ou telemóvel. Além disso, está a ser desenvolvido o GLA.MOUR, projeto focado na sustentabilidade, que visa não apenas tornar os próprios edifícios das bibliotecas mais eficientes e amigos do ambiente, mas também organizar sessões que ajudem as pessoas a adquirir hábitos de vida mais sustentáveis, como, por exemplo, o desperdício zero e a economia circular. Por último, realço o programa "Dois dedos de conversa", direcionado para a literacia científica: em conjunto com o Instituto Português do Mar e da Atmosfera e o seu projeto de ciência cidadã GelAvista, a biblioteca leva informação às pessoas sobre organismos gelatinosos, como as caravelas portuguesas e as salpas, entre outros.
Uma das ideias inovadoras que a instituição quer implementar são as caminhadas pela natureza que incluam paragens para ler ou ouvir pequenas histórias ou excertos, apanhando assim as pessoas desprevenidas. "A ideia é tirar o peso geralmente associado à leitura como sendo uma atividade aborrecida e solitária", acrescenta Rute Moura.
De Almada, trouxe o livro Cais do Ginjal, da autoria de Romeu Correia (1917–1996), escritor e dramaturgo português, natural de Cacilhas, Almada. "Optámos por escolher este livro por a narrativa de situar num local icónico de Almada, o Cais do Ginjal, e servir de exemplo daquela que é a sua obra, explorando o quotidiano de uma comunidade ribeirinha, as suas dificuldades, os sonhos e a dureza da vida dos trabalhadores do Tejo" esclarece a bibliotecária.
A vida e obra de Romeu Correia estão profundamente ligadas ao concelho de Almada, onde se destacou não apenas como autor, mas também como agente cultural e desportivo, sendo reconhecido pela forma como retratou a realidade das classes trabalhadoras e os desafios sociais da sua época, com um estilo simples e direto que aproximou a literatura do povo.
Primeiro exemplo:
"Em casa, ouvi a voz do meu pai. Falava com a mãe dele, mas havia qualquer discordância que lhes fazia alterar a voz. Escutei e logo me apercebi da razão da bulha. Ele visitara-nos para convencer a velhota a ir à caixa do tio Raul e retirar de lá dois contos de réis. Precisava dessa quantia e, quando tal sucedia, atravessava o rio e visitava a casa paterna. Tinha períodos de ausência de meses, anos até. Há nove que se apartara da minha mãe e talvez não nos visitasse cinco vezes. Quanto à minha mãe, essa, nunca mais a vira, mas sabia que residia na Calçada da Estrela, na casa de uma parteira.
A avó Josefina replicava que desta vez não lhe entregava nada daquela caixa. Havia vários filhos e só ele tinha levantado tanto dinheiro como todos os outros juntos. E para mais havia ainda duas irmãs solteiras, mulheres sem marido que lhes ganhasse um tostão.
Eu escutava o diálogo acalorado entre mãe e filho quando esbarro com as duas tias, a Ema e a Eugénia, que, chocadas com a minha presença, me pediram para que não estivesse a ouvir a conversa, pois o meu pai poderia não gostar. Pasmei do conselho, e ri-me, condoído e sarcástico. A protecção e as vontades feitas àquele irmão tinham-no posto naquele lindo estado. Ele vivia como queria, por onde queria, sem jamais assumir as responsabilidades de pai, de irmão ou de filho. Bem empregado no ramo automóvel, passavam meses em que se esquecia de mandar a mesada para custear o meu sustento, indiferente à minha educação e rumo a seguir. Nos rostos alvos das tias estava estampada a aflição do momento que se vivia."
O segundo:
"A rapariga apercebeu-se da fascinação que exercia, e sorriu, maternal, maliciosa, dominadora.
— Vai falar com o meu patrão, não é verdade?
— Vou —, gemi.
Observou-me durante um tempo sem perder o sorriso, e arriscou:
— Vossemecê é mal empregado...
— Em quê?
— Mal empregado na sua namorada. A operária da La Paloma não tem categoria para si.
— Como sabe que eu tenho uma namorada?
— Toda a gente sabe no cais. — E foi mais além: — Na nossa casa, tanto o senhor Costa como a dona Preciosa estão sempre a lastimar que um rapaz fino, de boas famílias, dê confiança a uma mulher do peixe..."
A vida, crua como ela é.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990