Eles vivem: o BCE e a ameaça de uma nova crise das dívidas soberanas

O Banco Central Europa aconselha, e condiciona publicamente, os Estados-membros da UE a negociarem com a nova administração americana.

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Eles Vivem é um filme de John Carpenter, de 1988, que faz refletir sobre os tempos atuais. A França está mergulhada numa crise política, a Europa tem uma guerra às suas portas, e a próxima administração americana não só pretende exigir um esforço maior dos países europeus no financiamento da NATO, como também os ameaça com guerras comerciais. Tudo isso ocorre num contexto de dívidas públicas, ainda marcado pela grande crise financeira de 2008, pela pandemia da covid-19 e pela guerra e turbulência geopolítica. Há uma enorme necessidade de investimento público para suportar a transição energética e tecnológica que a União Europeia precisa de realizar. O recente relatório Draghi para a Comissão Europeia contém um diagnóstico das necessidades de investimento e algumas propostas de financiamento europeu.

Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, afirmava que mentiras muitas vezes repetidas passam por verdades. Vem isto a propósito da crise das dívidas soberanas de 2010 na UE ter sido causada pelos gastos dos governos dos países em dificuldades na época. Não foi. A grande crise financeira de 2008, com epicentro nos Estados Unidos, atingiu a banca europeia, especialmente a alemã, devido aos ativos tóxicos que esta tinha na sua posse. Após convidarem os governos dos Estados-membros da UE a suportarem as respetivas economias, as instituições europeias da época converteram esta crise numa crise de dívidas soberanas ao recusarem assumir o Banco Central Europeu (BCE) como credor de último recurso. A solução encontrada foi a austeridade dita expansionista em toda a UE, com medidas mais draconianas nos Estados-membros resgatados. Estes últimos foram forçados pela troika a resgatar a respetiva banca, como condição para o seu próprio resgate. Ainda hoje, a UE paga pela falta de investimento e atraso tecnológico decorrentes dos erros então cometidos.

Foi com o discurso do “whatever it takes” para salvar o euro de Mário Draghi, em julho de 2012, que o BCE se assumiu como credor de último recurso. O discurso fez cair os juros das dívidas públicas dos diversos Estados-membros da UE, permitindo-lhes aliviar um pouco a austeridade. Só em 2015 o BCE iniciou a política não convencional de quantitative easing, que se intensificou em resposta à pandemia da covid-19.

Com a pandemia e a guerra, voltou a inflação, causada por quebras nas cadeias de abastecimento, especulação financeira nos mercados de futuros de cereais, poder fazedor de preços de empresas nos setores de energia e alimentos e também pela liquidez gerada pelas políticas não convencionais do BCE. No que se refere a esta última, uma boa parte estava estacionada no sistema financeiro.

O BCE poderia ter usado medidas de política monetária não convencional para secar a liquidez onde era mais necessário. Optou por iniciar o “phasing out” generalizado destas medidas e recorrer à política monetária convencional, que é cega, em vez de cirúrgica, atingindo famílias e PME, as classes médias. Agora, ameaça, publicamente, os Estados-membros da UE com a possibilidade de uma nova crise das dívidas soberanas e também os aconselha e condiciona, publicamente, a negociarem com a nova administração americana.

Para a União Europeia, parece ter chegado a hora. Ou perde o medo de existir e se afirma como potência mundial, com um projeto humanista para uma nova ordem mundial, ou se reduz à sua insignificância e corre o risco de se desintegrar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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