A República MAGA e o futuro da Europa
Os Relatórios Letta e Draghi são um bom ponto de partida para reagir à nova agenda americana.
Os próximos quatro anos marcarão as relações entre a República MAGA (Make America Great Again) e a Europa continental, com uma ênfase particular no projeto da União Europeia. Donald Trump ganhou as eleições presidenciais, muitas áreas da nova política americana serão, em princípio, descontinuadas face às políticas da administração democrata. Vejamos alguns exemplos.
Em primeiro lugar, o protecionismo comercial e as taxas aduaneiras já prometidas provocarão uma redução do comércio global e serão certamente seguidas de medidas de retaliação. O efeito de ricochete destas medidas prejudicará a economia europeia.
Em segundo lugar, a preferência atribuída à negociação e diplomacia bilaterais agravarão o multilateralismo e o primado das instituições internacionais. Esta tendência pesada prejudicará a construção do projeto europeu, as suas relações externas e, desde logo, as relações no quadro da NATO.
Em terceiro lugar, assistiremos a uma mudança dos termos da guerra entre a Ucrânia e a Rússia devido à anunciada revisão da ajuda americana à Ucrânia. A precipitação de uma medida com este alcance desencadeará uma crise interna da União Europeia e com impacto certo e seguro nos próximos atos eleitorais.
Em quarto lugar, não sabemos ainda como se comportará o triângulo Israel, Irão, países árabes em reação à nova política americana para essa zona do globo. Os combustíveis e o comércio de mercadorias serão afetados e, logo, a economia europeia.
Em quinto lugar, o endurecimento da política de migração e controlo de fronteiras com algumas deportações no horizonte afetará a política europeia nesta matéria que poderá seguir uma orientação semelhante com impacto no funcionamento do espaço Schengen, no mercado de trabalho e nas relações exteriores.
Em sexto lugar, é provável que assistamos a uma descida das políticas de ambiente e sustentabilidade no elenco de prioridades da política americana; uma redução dos custos de contexto e de transação nestas áreas da política pública americana terá impacto no comércio internacional e na sua regulação.
Em sétimo lugar, uma revisão eventual dos termos da política monetária e financeira e, nessa linha, uma nova abordagem à gestão da dívida pública americana podem perturbar o valor e o papel do dólar no sistema de pagamentos internacionais e, portanto, a estabilidade da economia internacional.
Em oitavo lugar, a mudança de prioridades da política americana de defesa e segurança para a zona do indo-pacífico e a desvalorização da NATO obrigarão a Europa a rever a a sua política de segurança e defesa e os investimentos numa indústria europeia.
Finalmente, a eventual convergência dos fatores mencionados anteriormente pode desencadear e, mesmo, acelerar novos realinhamentos no espetro político-partidário em muitos países europeus, levando ao colapso das “velhas ideologias da segunda metade do século XX” e à emergência de vários regimes autocráticos sufragados por um eleitoralismo populista criado e alimentado nas redes sociais.
Aqui chegados, já sabemos que as grandes transformações na União Europeia se devem, quase sempre, a fatores de origem externa. Em face dos impactos importantes que a nova administração americana provocará na Europa afigura-se muito pertinente a questão de saber se este é o pretexto que faltava para uma revisão dos tratados europeus em linha com a agenda de reformas propostas no Relatório Draghi ou se este é o golpe que faltava para o declínio irreversível do projeto europeu. De resto, as próximas eleições na Alemanha e em França serão, neste contexto, mais uma prova de fogo quanto ao futuro próximo do projeto europeu
Esta dupla interrogação sugere-me uma segunda reflexão, porventura ainda mais reveladora, e que diz respeito ao contraste das culturas políticas que informam e inspiram a construção do projeto MAGA, por um lado, e a construção europeia, por outro. Senão, vejamos, em termos simples e breves:
- A história é uma tara muito pesada, é preciso aliviá-la, a Europa tal como está é mais passado que futuro, a Europa ou é uma simples expressão do passado transatlântico ou é a grande esperança do futuro e da nova ordem internacional;
- Toda a política é transacional, tudo se joga num jogo de conveniências, interesses e cumplicidades de curto prazo que tudo sacrifica à sua volta e, desde logo, os projetos de médio e longo prazo;
- As elites aristocráticas são iliberais e antidemocráticas, o populismo e a demagogia estão mais próximos e comunicam diretamente com as classes médias e baixas;
- A desconexão da realidade e a realidade são assuntos interpretativos, o mundo é composto por várias realidades paralelas que as redes sociais ajudam a perceber;
- O determinismo tecnológico, a confusão entre os fins e os meios, a construção social da estupidez não são uma responsabilidade direta do oligopólio das Big Tech.
Dito isto, e os efeitos de contaminação respetivos, já não basta à Europa ser, apenas, a arte do possível. Os Relatórios Letta e Draghi são um bom ponto de partida para reagir à nova agenda americana. O Relatório Letta reporta sobre o mercado interno e um mecanismo de solidariedade que proteja os países da coesão face aos impactos do próximo alargamento ao leste europeu. O Relatório Draghi reporta seis grandes recomendações: aumentar a dívida conjunta e consolidar o mercado europeu de capitais (1), promover os bens públicos e comuns europeus (as redes de interligação) que são externalidades positivas fundamentais para o crescimento (2), traduzir a inovação em produção e comercialização de marcas europeias (3), desenhar uma estratégia industrial integrada para as cadeias de valor europeias (4), reforçar as capacidades de defesa e segurança europeias (5), refundar o processo de decisão europeu eliminando os vetos nacionais (6).
A terminar, importa estar muito atento ao curso dos processos político-eleitorais nos países europeus e em particular o que pode acontecer em França e na Alemanha. O tempo corre contra a União Europeia.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico