Os resultados eleitorais nos EUA e a caverna de Saramago
O sistema político americano admite uma alternância formal, rem bipólio. É um sistema fossilizado, montado para perpetuar um monopólio de duas cabeças, incapaz de se renovar em modo democrático.
José Saramago, no ano de 2001 (no documentário Janela de Alma, de João Jardim, Walter Carvalho), dirigindo-se ao mundo, afirmou: “Hoje estamos a viver na caverna de Platão. Porque as imagens que estamos a ver, substituem a realidade… No mundo audiovisual repetimos a situação das pessoas aprisionadas na caverna de Platão: olhando em frente, só vemos sombras e acreditamos que essas sombras são a realidade. E vai ser cada vez pior.”
Nós, os que fomos confinados à caverna, o que conhecemos do mundo eleitoral dos EUA? O nome de dois candidatos, que são afinal meras sombras das oligarquias que detêm todos os poderes na grande nação americana. A democracia americana nunca foi uma democracia económica. A democracia americana nunca foi uma democracia social. A democracia americana deixou de o ser, guerra após guerra, privatização em cima de privatização, quando, em nome do liberalismo, abriu a arca de todos os demónios capitalistas/monopolistas e imperialistas. E encerrou no fundo da caverna o seu próprio povo e os povos do seu império global.
Nenhum partido representa a vontade política da maioria dos eleitores dos EUA
O Facebook ajudou decisivamente a derrotar Hilary Clinton e a tornar a União Europeia numa coligação militar de segunda linha, com o "Brexit" e a saída do exército do Reino Unido. Democratas e Republicanos revezaram-se na tarefa de dividir a Europa, entre a Velha Europa do Ocidente liberal e a Nova Europa do Leste autoritário e militarista.
Quase 244 milhões de americanos poderiam votar, segundo o Bipartisan Policy Center… numa população de 335 milhões. Setenta milhões de votos recebeu a candidata democrata, o republicano venceu com 74 milhões. Quase 100 milhões de americanos não votaram ou não puderam votar. A candidata dos verdes, Jill Stein, quando concorreu à Presidência em 2016, obteve 1,4 milhões de votos. Obteve mais votos no Michigan, Wisconsin e Pensilvânia do que a diferença pela qual Donald Trump derrotou Hilllary Clinton em cada um desses estados. Por isso, foi acusada como a responsável pela primeira vitória de Trump e recebeu agora metade dos sufrágios, 700.000. Chase Oliver, do Partido Libertário, proclamando-se homossexual e pró-armas, recebeu 600.000 votos em nome da defesa dos direitos individuais. Cornel West, defendeu uma alternativa ao império, à supremacia branca, ao capitalismo, ao patriarcado e às limitações do sistema bipartidário, dominado por corporações. Obteve 500.000 votos. Então, a quase 2 milhões de cidadãos o sistema eleitoral nega automaticamente qualquer representação política, na Câmara dos Representantes e no Senado. O sistema admite uma alternância formal, mas reservada ao bipólio. Um sistema fossilizado, montado para perpetuar um monopólio de duas cabeças, incapaz de se renovar em modo democrático.
Fukuyama enganou-se, a democracia americana não era o fim da história cristalizada num prisma democrático de duas faces: esse regime de monopólio de duas cabeças decompôs-se numa amálgama onde só reluzem restos da democracia. A Cortina de Ferro de Churchill escondia, afinal, a sua própria duplicidade: enquanto proclamava a unicidade da democracia liberal, escrevia ao presidente americano, propondo que se usasse o poder exclusivo das bombas atómicas para tirar do mapa Moscovo e as principais cidades da União Soviética, como confessou Lord Moran, o médico pessoal e confidente, no seu livro de memórias.
Porque decaiu o voto democrático: o mito do crescimento como redentor do emprego e da pobreza e a sua volatilidade
Trump ganhou um milhão de votos entre 2020 e 2024; os democratas perderam 9,4 milhões, mais de 6,5 milhões de votos democratas foram parar à abstenção. São eleitores que procuram uma nova democracia?
Antes da pandemia, em fevereiro de 2020, havia um total de 159 milhões de pessoas empregadas nos Estados Unidos. No final de abril desse ano, 26 milhões de empregos tinham desaparecido. Mas a explicação da pandemia esconde uma outra razão: a estratégia política das grandes empresas e do governo foi o incremento da automação, da robotização e da Inteligência Artificial, que suprimiram milhões de postos de trabalho e esmagaram o valor do trabalho fabril e especializado. A dimensão dessa perda pode ser exemplificada por três casos concretos: um soldador podia receber até 50 USD por hora de trabalho, a robótica reduziu o custo da hora para os 8 USD. A JP Morgan contratava um exército de advogados para elaborar os contratos imobiliários, representando centenas de milhares de horas anuais: foram substituídos por complexos softwares. Call centers que empregavam milhares viram-se reduzidos a algumas dezenas, substituídos pelos chatboots. A aristocracia operária e a pequena burguesia, que integravam a classe média, viram a sua condição social ser esmagada. As empresas tecnológicas tombariam a seguir, despedindo às dezenas de milhar.
Os números baixos do chamado pleno emprego escondiam outra realidade preocupante: os novos postos de trabalho já não vêm da grande indústria e dos novos serviços tecnológicos, mas de micro e pequenas empresas, subsidiadas e endividadas, voláteis e onde reina a precaridade e o rendimento mínimo.
Em 2023, o rendimento médio familiar, decaindo 4%, era de 80.000 USD. Mas… mais de metade dos estudantes universitários terminavam o curso com dívidas, 1,7 mil milhões USD. Um terço da população em idade escolar não estava matriculada. Abaixo do limiar da pobreza viviam 36,8 milhões (11,1%). Os mais ricos possuíam 67% da riqueza, apenas 2,5% sobrava para mais pobres. Um por cento das famílias ricas possuía 26% da riqueza.
Fechou-se o sonho americano
As eleições americanas de 2024 foram as mais caras da sua história, US$ 15,9 milhares de milhões. 10,5 milhares de milhões em anúncios, cobrindo presidência, Câmara dos Representantes e Senado. O candidato presidencial democrata gastou 1600 milhões e o republicano 993. Mais 419 milhões gastaram-se publicidade digital. Kamala Harris captou diretamente US$ mil milhões. Do total, 40% dos valores vieram de pequenos doadores e outros 586 milhões, foram recolhidos pelos chamados comités de ação política (PAC), a capa que esconde a porta giratória por onde circulam os altos cargos políticos e nas administrações das grandes empresas.
Donald Trump arrecadou US$ 382 milhões com 28% das doações vindas de pequenos apoiantes. Os comités republicanos angariaram US$ 694 milhões dos grandes doadores: Timothy Mellon doou US$ 197 milhões; Richard e Elizabeth Uihlein, Miriam Adelson, o CEO da Tesla e SpaceX Elon Musk, Kenneth Griffin, cada um mais de 100 milhões.
No lado democrata, destacaram-se Michael Bloomberg, com 93 milhões de dólares e George Soros com 56 milhões.
Os investidores das indústrias de guerra e dos combustíveis fósseis são agora os novos capitães da indústria. Acima deles, pairam os "fundos abutre" e os bancos gigantes. Capturaram o Estado e canibalizam o Estado, apoderaram-se progressivamente dos principais recursos de comunicação de massas. Fechou-se o sonho americano.
Os 100 senadores progressistas e os abstencionistas que farão? Haverá ainda tempo e recursos para constituir um novo partido, verdadeiramente democrático e republicano, que resgate a democracia americana?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico