“Estados Gerais houve só uns, os do engenheiro António Guterres e mais nenhuns”
António Vitorino, ex-ministro socialista, deixa crítica ao actual secretário-geral do PS e continua a alimentar tabu sobre uma eventual candidatura a Belém.
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António Vitorino, ex-ministro socialista, não afasta, em entrevista ao PÚBLICO/Renascença, uma candidatura presidencial do seu futuro próximo e deixa críticas duras ao actual inquilino do Palácio de Belém, Marcelo Rebelo de Sousa.
Como socialista, acha que a liderança de Pedro Nuno Santos tem trazido algo de radicalmente novo?
Não, não vou meter-me na vida política interna. Não sou um agente da vida política interna.
Há pouco, falávamos, no fundo, de uma contaminação dos partidos em toda a Europa pelos partidos de extrema-direita. Acha que estamos também perante esse tipo de contaminação em Portugal?
Pode haver contaminação positiva e contaminação negativa, depende dos temas. Há um problema estrutural na União Europeia, neste momento não vale a pena ignorá-lo, que é o ascendente da extrema-direita populista.
E isso corresponde a um problema muito sério das nossas sociedades que tem que ver com a intranquilidade e a ansiedade e a insegurança sobre o futuro.
Há um conjunto de sectores sociais que têm visto as suas expectativas de vida, se não em declínio, pelo menos estagnadas.
O elevador social tem deixado de funcionar. Isso gera instabilidade e agrava as desigualdades. E, portanto, a única forma de responder ao crescimento do populismo que cavalga essas desigualdades é que os partidos do mainstream, os partidos históricos da União Europeia, encontrem resposta para estes sentimentos populares. E é isso que impedirá qualquer tipo de contaminação. Como combater as desigualdades numa conjuntura em que muitos dos mecanismos que usávamos para combater essas desigualdades já não são operacionais.
Exemplo? O imposto individual progressivo. O imposto progressivo permitia que pagassem mais aqueles que ganham mais para suster e apoiar os que ganham menos.
Simplesmente, hoje, com a redução do volume do rendimento do trabalho, o que nós estamos a fazer é tirar a remediados para dar a pobres.
O que é que espera dos Estados Gerais do PS? Primeiro, vai participar? Pode participar, dada as suas funções?
As minhas funções não me impedem o exercício de nenhum direito de cidadania. Eu digo o que penso. Não estou ao corrente de quais são os planos para os Estados Gerais, aliás, eles só serão anunciados no início do ano que vem.
Mas conviveu de perto com essa realidade dos Estados Gerais.
Vou-lhe confessar uma coisa que se calhar não devia, é politicamente incorrecta. Causou-me um pouco estranheza a repescagem do termo. Teria preferido uma outra escolha.
Porquê?
Porque os Estados Gerais houve só uns, os do engenheiro António Guterres e mais nenhuns. Isto é, os Estados Gerais têm uma identidade suficientemente forte para que a ideia de repescar o nome não me tenha agradado. Pronto, aqui tem uma declaração sobre política nacional que eu não queria fazer, mas, pronto, já fiz.
Acho que era possível chamar-lhe outra coisa que não fosse apenas de copiar aquilo que nós fizemos em 1995 com o engenheiro Guterres.
E a tendência pode ser essa? Só copiar?
Ah, isso não sei.
Os tempos são outros e, portanto, isso significa que acha muito pouco ambiciosa esta liderança do PS.
Não, não vale a pena tentar, porque eu sou de uma teimosia verdadeiramente irritante. O outro era de um optimismo irritante, não era? Eu sou de uma teimosia irritante.
Coloca de parte eleições legislativas antecipadas no ponto em que estamos? Ou acha que esse cenário está adiado?
A minha convicção é que sim, isto é, há compromissos de que este Orçamento será viabilizado. Enfim, agora há uma série de elementos, mas isso faz parte da vida até, dá algum picante, senão isto não tinha piada nenhuma.
O PS não terá achado graça.
Ah, mas isso faz parte. Também há o aumento das pensões para compensar. Não vale a pena entrarmos muito nos pormenores, porque isto faz parte do jogo político. E o jogo político é positivo, porque significa que temos as sociedades abertas, com escrutínio público sobre o que os actores políticos fazem.
Estou convencido de que este Orçamento será aprovado e que, portanto, na ordem natural das coisas, não haverá eleições legislativas antecipadas.
O Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, em 2021, criou um precedente que me causou alguma estranheza: anunciar, por antecipação, que se o Orçamento não for aprovado, há dissolução da Assembleia da República. Em meu entender, isso não está em linha com o que é a função presidencial no nosso sistema político.
Se um governo apresenta um orçamento e o vê chumbado, a primeira coisa que tem de fazer é fazer outro. E negociar outro. Pode não o querer fazer. Tem toda a legitimidade. Mas tem a obrigação de o tentar. E só no caso de todo em todo de ser inviável uma aprovação orçamental é que o governo deve tomar a iniciativa de dizer ao Presidente da República: “Não sou capaz.”
De alguma forma, o professor Marcelo antecipou etapas. Aliás, não é de espantar, porque ele é uma pessoa bastante acelerada. Criou este precedente que é pensarmos que a inviabilização de um orçamento só pode conduzir a eleições antecipadas.
Coisa que não disse agora, este ano.
Não disse, deu a entender outra, enfim. Não vou querer meter-me nisso. Só quero dizer que a lógica das coisas é a de que, se o Orçamento pré-2026 não for aprovado, no final do próximo ano, de 2025, também aí não há nenhuma inevitabilidade histórica de eleições na minha interpretação da Constituição.
Mas se esse for o caminho, preenchido das etapas que tornem clara a responsabilidade dos actores, designadamente do Parlamento e do Governo, só podemos ter eleições depois da eleição do novo Presidente da República, o que apenas pode ocorrer após 11 de Março de 2026.
Das suas declarações, pode deduzir-se que até acha que a legislatura até pode ir praticamente até ao fim.
Oh, minha cara minha, isto é Portugal.
Tudo pode acontecer!
[Risos.]
Quer ajudar a desfazer o tabu que tem criado sobre presidenciais? Em Agosto, em entrevista ao Now, disse que ainda faltava muito tempo para as presidenciais. Agora, há 15 dias, disse na RTP3 que ainda não era o tempo e, portanto, com estas declarações, está sempre a alimentar o tabu ou estamos a ser injustos?
Sinceramente, eu acho que não tenho estatuto na sociedade portuguesa para criar tabus.
Mas cria.
Não na minha perspectiva. A resposta é muito clara. Eu acho que há um tempo para todas as coisas e que há que respeitar os tempos. Até este momento, que eu saiba, não há nenhum candidato à Presidência da República.
Há uma personalidade que também está a fazer uma espécie de tabu, o almirante Gouveia e Melo, não é?
Não sei. Toda a gente fala do almirante Gouveia e Melo, Marques Mendes. Ainda não ouvi nenhum saltar.
Quando é que é a altura, então?
Eu acho que o ano que vem permite com tranquilidade. A questão é a conjugação de dois factores – um é a vontade do candidato, é um cargo unipessoal; o segundo é também a leitura do que é que o país pode desejar no exercício da função presidencial. E isso, a meu entender, veremos mais claro no ano que vem.
E porque é que não mata o assunto desde já? É porque há uma intenção de ponderar mais tarde?
Não há aqui ninguém que possa cantar a moral a quem quer que seja. Nós já vimos de tudo. Já vimos candidaturas negadas nem que Cristo viesse à Terra. E não constando que Cristo tenha vindo, depois foi candidato. Não vale a pena. Não há aqui nenhum tabu. Eu estou a dizer apenas uma coisa temporal que me parece fazer sentido, não apenas para mim. Esse ponto eu, se calhar, não sou capaz de explicar. Mas como não há ainda nenhum candidato no terreno, acho que todos partilham a minha interpretação, ainda que possam ter outros motivos. Eu acho que é prematuro estar a tratar desse assunto.
E tem sofrido algum tipo de pressão até do seu próprio partido, ou não?
Não.