Detemos os olhos na fachada, sóbria no seu branco Alentejo, barras azuis nas janelas. Nem “hotel”, nem “guesthouse”, nem nada. Nada se lê neste prédio, tirando o toldo de uma velha loja no rés-do-chão, a Casa Granha — retrosaria “fundada em 1948”, com montra de belos panos, talegos, recordações que parecem vir do tempo em que meio Portugal passava por Alcácer do Sal por causa das férias no Algarve. Mas com fachada que nada impõe, nada grita, o certo é que este edifício tem uma vida novíssima.
É passar a porta azul e entrar como quem entra num museu vivo e vivido, como quem passa uma ponte que cruza os tempos, uma ponte para o mundo de Filipa Fortunato e António Costa Lopes, casal de arquitectos já com pergaminhos na busca de união entre a hotelaria personalizada, a arte e o design, do local com o mundo. Um luxo, sim, mas com premissas humanas, e, no caso, enraizadas na cidade que acolhe esta (segunda) Casa Fortunato.
Para isso, contam muito não apenas o conjunto mirabolante de peças extraordinárias, de artesanato e trabalho de restauro do edifício, das unicidades de cada suíte, da qualidade global dos materiais ou mobiliário, do surpreendente pátio-jardim e da sua piscina ou dos itens vintage; acima de tudo, contam muito, para além da omnipresença dos anfitriões Filipa e/ou António, também a Maria da Luz, a Maria da Conceição e Ester, três mestras nascidas em Alcácer, que nos põem os pés na terra (e delícias à mesa).
Fortunato, a casa que vai de Lisboa a Alcácer
Sem ligação à cidade, apenas “a memória das passagens para o Algarve”, “a ponte e aquelas filas”, como nos diz Filipa, ela e o marido começaram a fazer férias em Melides há mais de uma década. É certo que para muitos, com o apogeu da A2, Alcácer deixou de ser obrigação e passou a ser apenas desvio facultativo, transformação de que a terra se ressentiu. Mas com Comporta-Melides como novas mecas deluxe, é mais do que natural que as ondas se façam sentir até Alcácer, a uns 30 minutos das praias e desses cintilantes destinos. Também Filipa e António começaram a dar cá uns saltos e acabaram por comprar o edifício, “muito degradado”.
Por essa altura, estavam dedicados à original Casa Fortunato, em Lisboa, que se tornaria uma coqueluche nos media internacionais do turismo de design e luxo — entretanto, venderam o local ao grupo Sublime (por sinal, da Comporta). Agora, há nova Casa Fortunato, que começou a receber hóspedes antes do Verão e que, embora alicerçada nas mesmas premissas, incluindo a proximidade de anfitrião-hóspede, não é um ovni na cidade, é um luxo de Alcácer (ressalve-se que os preços por noite começam em redor dos 300 euros). É uma “experiência”, uma certa imersão sensorial num universo que poderia aproximar-se de uma estadia numa galeria de arte, com a ressalva de que não o é, é arte vivida, incluindo a de uma estadia que, respeitando todos os protocolos da hotelaria, deixa de lado os “standards e os vícios”, por vezes “muito formatados”, de tal indústria. “Há uma espontaneidade que nos distingue”, diz Filipa. É a tal questão humana: “Há uma genuinidade de coração em Alcácer e na nossa equipa”, defende a proprietária, habituada à hotelaria familiar, até porque a família (com quatro filhos) vivia no sótão da primeira Casa Fortunato. “A nossa presença é o factor diferenciador, não há outra Filipa nem outro António, nem outra família como a nossa”. É o primado do anfitrião.
O centenário prédio era, outrora, duas casas, já “muito estragadas” — “Chovia cá dentro!”, lembra Filipa. “O desafio maior foi pôr as casas de banho nos quartos, trabalhar as canalizações sem mexer nos tectos, nem no andar de baixo”, sem "mexer na métrica da casa”.
Filipa guia-nos pela casa como uma curadora pela sua colecção. Admiramos agora corredores e salas imaculadas, seis suítes topo de gama, chãos e tectos restaurados com respeito pela patine do tempo — tal como sucede nas portas e vidraças, coreografias de cores e geometrias, ladrilhos e azulejos que entre novos e antigos são, também, obras de arte.
E vamos vendo obras de José Pedro Croft, Noronha da Costa ou Abel Manta, peças de design histórico de Daciano da Costa e do mundo — aqui, cada peça “tem uma história” e em cada uma, do mobiliário à iluminação, sente-se a mão do designer (um sofá Patricia Urquiola, outro Mario Bellini, um cadeirão Marc Newson Nimrod, o candeeiro Foscarini, etc., etc.). Se esta casa de hóspedes tivesse um livro-catálogo com explicação para cada peça, ou mesmo se cada uma tivesse uma etiqueta com o seu histórico, não admiraria nada. É outro luxo: “70% das peças são nossas, das nossas colecções [são especialistas em pós-modernistas] ou da família, que andaram pela nossa casa”, comenta Filipa. Até uma mesa de jogo, que era da avó, ou quadros pintados pela mãe, Isabel Braz de Oliveira. Por todo o lado, muitas revistas e livros, também de arte e design (claro), mas não só. Até sinais dessa familiaridade cruzada de anfitrião-hóspede. Abro um livro de crónicas de Miguel Esteves Cardoso e lá de dentro salta um papelinho. Está escrito a letra de menina pequenina e diz: “Peço muita desculpa, mãe, Love You”. Memórias da filha mais nova. Sorrimos os dois.
O sweet design das suítes
São apenas seis quartos e suítes, mas, detalhe: “Quisemos fazer de cada quarto um caso”. E assim é, cada um tem mobiliário próprio e adaptado, cada um tem a sua palete de cores e narrativa, seja do branco-em-branco com apontamentos coloridos e fofos tapetes artesanais a pormenores em escarlates ou verdes, da iluminação que serpenteia pelas mesas ou que cai, em Noguchi, do tecto, aos impressionantes padrões de azulejos e ladrilhos. É uma questão de “personalidade”, como diz Filipa, que faz finca-pé no “fugir do tudo em série”.
Aparentemente, só as camas são todas iguais, assim como a qualidade de têxteis — não se brinca em serviço, pesa-se a gramagem das toalhas, contam-se em centenas os fios de algodão e há linho a luzir o olho. O meu quarto é o maior e é um primor, com uma espaçosa sala de estar, pontuada por uma grande secretária, janelões para a rua e, não tão comum assim, duas casas de banho.
Sendo “partilha” um mote essencial da Casa Fortunato, “os espaços comuns estão pensados para essa partilha também: a sala de estar, o pátio, a grande mesa de refeições”. Passemos os corredores a cintilar pinturas murais que imitam mármores (“já cá estavam”), sigamos as linhas da luz pela casa — para além de muita luz natural, boa parte da iluminação é feita por fios e cintas que conduzem a corrente ao longo das paredes, uma forma arranjada para evitar esburacar as paredes e que, de certo modo, parece fazer pendant com a retrosaria no rés-do-chão —, e desaguemos no luminoso pátio. Abre-se já em frondoso jardim, entre cítricos, ervas aromáticas e muito mais: “Era tudo cimento e mato”, lembra a anfitriã, orgulhosa deste jardim plantado há apenas dois anos. Para lá de um pórtico que divide o espaço, a policromática piscina (tamanho tanque, mas boa para umas braçadas). “Somos fãs dos mosaicos hidráulicos, fomos buscá-los à fábrica a Montemor.” Queriam muitos e ficava cara a perfeição, logo compraram sobras de colecção e montaram o seu próprio puzzle. O resultado é uma explosão, num caos ordenado de todas as cores, um “salpicado”. Provavelmente, o mergulho mais colorido da região. Ali ao fundo, está a terminar-se um duplex, que será mais uma suíte deluxe pronta na Primavera.
Envoltos neste mundo desenhado ao detalhe, em sábia diversão, por Filipa e António, deleitamo-nos ainda com mais prazeres, os da mesa, desta feita graças a um trio precioso, senhoras de Alcácer. “São os nossos anjinhos da guarda”, como diz Filipa. Os “anjos” são Maria da Conceição, Maria da Luz e Ester, que acompanham cada momento da vida da casa, incluindo na luzidia cozinha, onde o high tech casa com velhos móveis restaurados, balanças centenárias e paredes decoradas a sardinhas de louça. Se no pequeno-almoço vamos de uma sopa de miso a bolos de arregalar as papilas, ao jantar temos também divino e local menu. “Não somos um restaurante, mas fazemos por encomenda”, dizem-nos. Muitas vezes é o local peixe ao sal, outras, como nos cabe a nós, uma sopa de tomate à alentejana como manda a lei, acompanhada de rodelas de linguiça. Há muito design e arte, é certo, mas o casal da Casa Fortunato sabe mais, sabe que é “bom ir buscar tradições e sabedorias de Alcácer, reabilitá-las”.
Uma delas chega com Maria da Luz, um bolo de mel, receita da sua família, que durante muitos anos esteve ligada ao comércio de mel, a vender também bolos e licores pelas feiras, além das históricas pinhoadas. Até o nome do bolo é uma obra de arte, baptizado segundo um apelido do pai: sendo o pai apicultor, era conhecido como caga-mel. Esta casa é arte por todo o lado. Aliás, ainda nos falta provar a especialidade de Maria da Conceição, as migas, além das afamadas empadas de galinha de Ester. Teremos de voltar.
A Fugas esteve alojada a convite da Casa Fortunato