Guerra na Ucrânia: e quando as linhas vermelhas deixarem de o ser?

A Trump bastará ameaçar ou retirar algum do apoio económico, político ou militar atribuído à Ucrânia, para que esta acabe por perceber a inevitabilidade da diplomacia e negociação.

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O presidente cessante, Joe Biden, autorizou ontem a Ucrânia a utilizar mísseis americanos para atacar território da Rússia, reduzindo as limitações que tinha mantido sobre o emprego de armas de longo alcance. As últimas semanas ajudam a explicar a mais relevante das decisões em meses, e as suas eventuais consequências.

A transformação de um “plano para a paz” maximalista de Zelensky para um “plano para a vitória” que foi avaliado como irrealista e irracional pela Administração Biden, acompanhada pelo emprego de forças norte-coreanas apresentaram sérios desafios políticos e militares para a Ucrânia. Scholz, com derrota garantida nas próximas eleições antecipadas, e empoderado pelo resultado da eleição nos EUA, parece finalmente ter encontrado a sua própria voz neste conflito: apoio à Ucrânia, mas defesa da diplomacia e negociação, reconhecendo-as como a única saída possível do conflito.

O melhor exemplo desta posição é a confirmação por Scholz de que a decisão dos EUA não se aplica aos mísseis Taurus da Alemanha. O diálogo com Putin foi tratado por Zelensky simultaneamente como abrindo uma “caixa de pandora” e como sendo irrelevante, o que acrescenta às já muitas instâncias de péssima comunicação política de Zelensky incentivos contraditórios para os seus aliados.

A vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA parece ter sérias consequências sobre a situação na Ucrânia. Trump rejeita a preservação a todo o custo da posição dos EUA como potência proeminente e indisputada no sistema internacional, através de enormes compromissos em segurança e defesa por todo o mundo (como historicamente os republicanos propunham) ou da construção de uma “ordem internacional liberal”, assente nas regras e organizações internacionais criadas e lideradas pelos EUA desde a II Guerra Mundial (como propõem sobretudo os democratas).

Ao invés, entende, como parece ser prática na futura administração Trump, que tal posição é um desperdício de recursos, que o envolvimento em lutas de poder regionais é nocivo para o poder e interesses dos EUA, que o interesse nacional é definido de forma mais precisa, que os EUA devem a sua segurança sobretudo à sua geografia, e que, portanto, desistir da estratégia anterior significa deixar de querer construir uma “ordem internacional liberal” que levou a guerras desnecessárias, inúteis, ambiciosas e caras, para promover a democracia e preservar o “império”.

O ataque russo de ontem, na maior escala dos últimos meses, contra infraestruturas de energia e alvos militares, foi a gota de água que precipitou a decisão. Não sabemos ainda se esta possibilidade tinha sido aventada por Biden a Trump quando se encontraram após as eleições. Não sabemos também que posição Trump poderá tomar relativamente a esta questão. Contudo, os resultados para a guerra são mais ou menos previsíveis: uma escalada do conflito com fraca possibilidade de produzir alterações substanciais no terreno, como o que temos visto no último ano de impasse (quantas armas milagrosas já nos venderam, game changers com impacto quase nulo?); um enorme aumento da insegurança de parte a parte, o que só aumenta a dinâmica de escalada e o risco, não só para ucranianos e russos, mas para todos nós; portanto, a possibilidade de todos terem maiores capacidades militares e de todos estarem mais investidos na guerra, sem verem aumentada a sua segurança. Na melhor das hipóteses, terá um ligeiro impacto táctico positivo para a Ucrânia, com todas as outras consequências que indicámos.

Putin tinha traçado uma linha vermelha relativamente à possibilidade desta acção. A decisão de se estes mísseis serão empregues apenas em Kursk ou também no resto do território será determinante para a resposta da Rússia. É certo um reforço da cooperação com a Coreia do Norte, e talvez também com outros parceiros da sua vizinhança. O atraso dos avanços militares que a Rússia está a fazer no Leste, mas também a espera pela chegada de Trump ao poder poderão significar uma resposta da Rússia mais fraca do que o previsto. Contudo, com o risco que Putin quer evitar: que as linhas vermelhas, o bluff associado à dissuasão militar seja percebido como tal, e que o Ocidente aposte ainda mais em armar a Ucrânia, esperando não sofrer consequências dessa acção.

A Trump caberá decidir o futuro deste conflito. A Trump bastará ameaçar ou retirar algum do apoio económico, político ou militar atribuído à Ucrânia, para que esta acabe por perceber a inevitabilidade da diplomacia e negociação, como, aliás, Zelensky tem feito nas últimas semanas, contradizendo a “paz pela força” que tentou vender como a estratégia de Trump para o mundo e para a Ucrânia.

À Europa fica a faltar perceber o seu próprio futuro. Entregue a uma Guerra Fria 2.0 contra a Rússia, ou conseguindo encontrar alguma forma de coabitação com o seu eterno vizinho. Para além de, passados dois anos e meio de o termos dito pela primeira vez, já ninguém acreditar seriamente numa vitória militar da Ucrânia, o temor generalizado de uma guerra mais intensa e eventualmente mais alastrada, causada por uma lógica da dissuasão cada vez mais frágil, deveria fazer-nos ponderar sobre a racionalidade da estratégia destes últimos anos.

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