Dez dias após as cheias, milhares de manifestantes em Valência pedem demissão de Mazón
Protesto com o mote “Mazón demissão” foi convocado por 40 organizações da sociedade civil e sindicatos. Grupo de manifestantes atirou lama contra edifício da câmara e polícia foi obrigada a intervir.
Dezenas de milhares de manifestantes reuniram-se este sábado na cidade de Valência para protestar contra a actuação do governo regional nas cheias que mataram mais de 220 pessoas e para pedir a demissão do presidente da Comunidade Valenciana, Carlos Mazón. A manifestação, com o mote "Mazón demissão", foi convocada por 40 organizações sociais e sindicatos para as 18h deste sábado.
Mais de dez dias após as inundações que causaram mais de 220 mortos em Espanha, mantêm-se as queixas sobre falhas nos alertas e na assistência às populações, com o maior alvo a ser, para já, o governo regional valenciano.
“Estamos manchados de lama, mas vocês estão manchados de sangue”, “Mazón, renuncie” e "Mazón na prisão" foram algumas das frases escritas pelos manifestantes em cartazes e faixas. Apesar de haver críticas tanto ao Governo central, liderado pelos socialistas, como ao executivo autonómico conservador do Partido Popular (PP), foi contra este último que nos últimos dias se adensaram as críticas.
A agência Lusa escreve que no início da manifestação ocorreram incidentes em frente à Câmara Municipal, onde um grupo de jovens atirou lama, o que exigiu a intervenção da tropa de choque. Posteriormente, no final da manifestação e nas proximidades da Plaza de la Virgen, lama, cadeiras e outros objectos foram novamente atirados contra os agentes policiais, que intervieram novamente.
Escreve o diário El País que entre os milhares de participantes há quem ainda tenha a roupa manchada de lama por ter estado a ajudar nos trabalhos de limpeza nas zonas mais afectadas pelas inundações. É o caso de Pedro López e Mario Portero, dois jovens de vinte e poucos anos que, de pá na mão, levantam a voz contra a gestão do governo regional. “Temos a impressão de que a política já não pensa nas pessoas. Nós, jovens, não entendemos como o Estado não tem conseguido gerir os recursos para ajudar as pessoas com rapidez. Fomos nós que fomos ajudar”, afirmou Pedro, que disse estar há dez dias a trabalhar em zonas como Catarroja.
As entidades organizadoras das manifestações deste sábado, que também estão a acontecer em cidades como Alicante e Madrid, pediram uma marcha silenciosa, por respeito às vítimas das cheias: “Pedimos que seja uma marcha silenciosa, que não dê espaço a quem vai provocar motins e tentar transmitir uma mensagem de violência”. Os participantes começaram por protestar com a sua presença e gestos, mas antes da hora marcada a indignação e raiva geraram gritos e palavras de ordem que ecoaram pelas ruas centrais da cidade. A manifestação lotou o centro da capital valenciana, o que impediu, em muitas alturas, que a multidão desse mais do que uns poucos passos.
"Queremos a mostrar a nossa indignação e raiva pela má gestão deste desastre que afectou tantas pessoas", disse Anna Oliver, presidente do Accio Cultural del Pais Valenciano, um dos cerca de 40 grupos que organizaram o protesto. Embora a manifestação tenha sido, em grande, parte pacífica, a polícia foi obrigada a intervir quando alguns manifestantes atiraram pedras e outros objectos contra o prédio do conselho municipal, causando pequenos danos.
Entretanto, a Câmara Municipal divulgou um comunicado onde lamenta o “terrível vandalismo” que o edifício sofreu durante a manifestação. Segundo o comunicado, “foi anulada uma tentativa de atear fogo à porta principal, que teve de ser apagado com extintores pela polícia que se encontrava no interior do edifício”.
“Além disso, diversas janelas foram partidas e foram pintados vários grafittis nas paredes”, acrescentou. A autarquia frisou na nota que estão atitudes “não se podem tolerar porque nestes momentos há que trabalhar em conjunto para recuperar os locais afectados pelas cheias”.
Alerta tardio é uma das principais queixas
A indignação contra as instituições públicas teve no domingo passado um momento inédito na história democrática de Espanha, quando os reis, Felipe VI e Letizia, o primeiro-ministro, Pedro Sánchez, e o presidente do governo regional, Carlos Mazón, foram recebidos com lama e gritos de "assassinos" numa das mais de 70 localidades afectadas pelas cheias, Paiporta.
A região de Valência foi atingida por um temporal a 29 de Outubro, ao final da tarde. Eram 20h10 quando chegou aos telemóveis um alerta escrito, mas nesse momento já havia localidades e estradas alagadas com milhares de carros presos nas águas. O alerta chegou às 20h10, mas havia um aviso vermelho da meteorologia desde as 7h31. A responsabilidade do envio dos alertas cabe às autoridades autonómicas (a Comunidade Valenciana), enquanto os serviços meteorológicos são estatais.
A actuação das autoridades nacionais e autonómicas no dia 29 de Outubro, nas horas prévias às inundações, tem enchido noticiários e jornais nos últimos dias, com os relatos de um lado e outro a nem sempre coincidirem. As fontes do governo central revelaram e-mails e contactos telefónicos "ao mais alto nível" logo desde a manhã, com o objectivo de alertar autarcas e o executivo da Comunidade Valenciana para o perigo e a necessidade de actuação.
As fontes do governo regional, sem negarem os contactos, garantem que não tiveram esse teor tão concreto ou alarmante, o que só aconteceu já perto das 20h, quando um secretário de Estado avisou para a possibilidade de rebentar uma barragem.
Diversas declarações de Mazón e membros do seu governo sobre o dia 29 de Outubro têm sido, porém, desmentidas por documentos e gravações tornados públicos, mas também por comandos militares ou ministros.
Quanto a Mazón, teve naquele dia, segundo o seu gabinete, um "almoço privado de trabalho" de várias horas e só às 19h chegou à reunião do gabinete coordenador de emergências que estava convocado para as 17h. Esta é a versão oficial mais recente, que contradiz outras anteriores, que garantiam que tinha estado no seu gabinete e sempre informado sobre o temporal.
Fontes governamentais garantem que a ministra da Transição Ecológica, Teresa Ribera, que tutela os rios, o tentou contactar várias vezes sem êxito, o que só conseguiu ao final da tarde.
O alerta tão tardio é uma das principais queixas e questões colocadas desde 29 de Outubro, mas não a única. Há também protestos pela demora na chegada de assistência às populações após as cheias.
Neste momento, estão no terreno cerca de 15 mil militares e elementos das forças de segurança do Estado, mas foram chegando pouco a pouco, com o maior reforço a ter ocorrido só no fim-de-semana. Estes meios são enviados pelo Governo central, mas tem de ser o executivo regional a pedi-los, por serem as autoridades autonómicas a terem a tutela do comando das operações.
No entanto, o Governo de Espanha poderia aprovar unilateralmente uma declaração de "emergência nacional" e automaticamente assumir o controlo, substituindo as autoridades autonómicas. É isto mesmo que têm pedido a Sánchez partidos políticos de esquerda e outras vozes, que defendem que há uma incapacidade e incompetência já comprovadas do governo regional valenciano na gestão da crise.
Foi também, e de forma surpreendente, o que defendeu o líder nacional do PP, Alberto Núñez Feijóo, na segunda-feira, quando considerou que a dimensão da catástrofe justifica a declaração de "emergência nacional", numa declaração vista como de responsabilização do executivo de Sánchez, mas também de desautorização de Carlos Mazón.
Sánchez lembrou na terça-feira que Espanha é um país descentralizado, totalmente organizado em autonomias, num sistema de "co-governança" que já deu provas de funcionar, mesmo em situações extremas, como a pandemia.
Neste contexto, disse que não iria substituir a Comunidade Valenciana no comando das operações, invocando o respeito institucional, mas também "a eficácia", porque uma mudança agora diminuiria o nível de resposta às populações, por ser a administração regional e local que melhor conhece o terreno e a situação nas áreas afectadas. "Todos somos Estado. E, portanto, o que temos de fazer é cooperar", afirmou.
Sánchez e Mazón, nas declarações públicas que fizeram até agora, estão de acordo num ponto: este é o momento de gerir a emergência; o apuramento de responsabilidades por falhas e erros é "outra fase". Com Lusa