Cheias de Espanha foram as piores dos últimos anos. Eis o que correu mal

Poucas obras de mitigação de cheias, falta de protecção das casas construídas nas planícies aluviais, educação escassa das pessoas e avisos tardios aos residentes contribuíram para as centenas mortes.

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Voluntários limpam uma cave em Paiporta, na região de Valência, Espanha JORGE ZAPATA / EPA
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Veículos danificados em Massanassa Ana Beltran / REUTERS
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Membros da Unidade Militar de Emergência procuram cadáveres na ravina de Poyo, em Catarroja, Valência, Espanha KAI FORSTERLING / EPA
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Voluntários limpam lama das estradas em Paiporta ANA ESCOBAR / EPA
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Voluntário limpa lama junto a uma habitação na região de Valência ANA ESCOBAR / EPA
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Frasco de gel desinfectante pendurado num poste de electricidade durante os trabalhos de limpeza no município de Paiporta ANA ESCOBAR / EPA
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Voluntários limpam lama das estradas em Paiporta ANA ESCOBAR / EPA
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Trabalhos de limpeza em Paiporta ANA ESCOBAR / EPA
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Soldados da Marinha espanhola durante trabalhos de limpeza no município de Paiporta JORGE ZAPATA / EPA
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Trabalhos de limpeza em Paiporta JORGE ZAPATA / EPA
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Voluntários limpam lama das estradas em Paiporta JORGE ZAPATA / EPA
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A água já lhe dava pelos joelhos quando Aitana Puchal, que se tinha refugiado num hotel para fugir da chuva, recebeu a mensagem de alerta do governo regional de Valência, às 20h do dia 29 de Outubro, avisando a população de que se deveria abrigar devido à possibilidade de ocorrência de cheias.

"O aviso teria sido útil cerca de seis horas antes", disse a jovem de 23 anos, que passou horas, juntamente com outros residentes e hóspedes locais, no primeiro andar de um hotel perto da cidade de Paiporta. "Estávamos todos a acalmar-nos um pouco do pânico e a secar os pés."

Outros não tiveram a mesma sorte. Carlos Martinez, outro residente de Paiporta, disse à televisão local que o alerta para inundações surgiu quando já estava preso numa árvore "a ver corpos a flutuar".

Dezenas de habitantes das comunidades inundadas disseram à Reuters que, quando receberam o alerta do governo regional, a água cheia de lama já rodeava carros, submergia ruas das suas cidades e entrava nas casas.

Após dias de avisos para a ocorrência de tempestades emitidos pelos serviços meteorológicos nacionais, alguns municípios e instituições locais tinham feito soar os alarmes muito mais cedo. A Universidade de Valência, por exemplo, tinha avisado os seus funcionários no dia anterior para não irem trabalhar. Várias câmaras municipais da região leste de Espanha suspenderam actividades, encerraram instalações públicas e pediram às pessoas para ficarem em casa.

Mas informações contraditórias e a confusão que estas geraram custaram vidas, disseram à Reuters dezenas de residentes locais e especialistas. Mais de 220 pessoas morreram e cerca de 80 estão ainda desaparecidas naquela que é a mais mortífera inundação num único país europeu desde 1967, quando as cheias em Portugal mataram cerca de 500 pessoas.

O serviço nacional de meteorologia AEMET tinha elevado o nível de alerta para alerta vermelho às 7h36 do dia 29 de Outubro, na sequência das chuvas intensas que estavam a cair nas áreas montanhosas a oeste da cidade de Valência desde o início da manhã. Nas 12 horas em que tardou a chegar a mensagem de alerta do governo regional, as águas que corriam pela ravina de Poyo, habitualmente seca (e o epicentro das inundações) tinham subido para mais do triplo do caudal do maior rio de Espanha, o Ebro.

À medida que as alterações climáticas exacerbam os padrões meteorológicos ao longo da costa mediterrânica espanhola, as inundações estão a tornar-se comuns e alguns incidentes anteriores foram mortais. Mas depois de pelo menos cinco décadas sem uma catástrofe de grandes proporções, muitas pessoas em Valência não estavam conscientes dos graves perigos das cheias repentinas e não sabiam como reagir.

Puchal, a jovem de 23 anos que se refugiou no hotel, disse que nunca tinha recebido muita informação sobre os riscos de inundações. "Na escola, falavam sobre incêndios", disse. Isto, juntamente com a má coordenação entre as autoridades regionais e nacionais e com a falta de investimento em infra-estruturas fluviais, fez com que as cheias repentinas se matassem tanta gente, disseram sete especialistas consultados pela Reuters.

"Era previsível que houvesse inundações catastróficas", disse Felix Frances, professor de engenharia hidráulica e ambiente na Universidade Politécnica de Valência. Foram registadas mortes em 14 das 24 cidades que já tinham sido identificadas em relatórios do Ministério do Ambiente como estando em risco elevado de inundações, segundo uma análise da Reuters.

Especialistas, incluindo engenheiros hidráulicos e civis, geólogos, urbanistas e especialistas em assistência em catástrofes, afirmaram que as sucessivas falhas — na realização de obras de mitigação das cheias nos rios próximos, na melhor protecção das casas construídas nas planícies aluviais, na educação das pessoas e no rápido aviso aos residentes — contribuíram para as centenas mortes.

Com melhores infra-estruturas, "o número de mortes teria sido infinitamente menor", disse Luis Bañon, engenheiro e professor de Engenharia de Transportes e Infra-estruturas na Universidade de Alicante.

Uma fonte do governo central disse que se esperam vários inquéritos judiciais para examinar as decisões tomadas e atribuir responsabilidades pelo elevado número de mortos.

À medida que os fenómenos climáticos se tornam mais extremos e que a Europa aquece mais rapidamente do que a média global, o que aconteceu em Valência sublinha a necessidade de medidas estratégicas e coordenadas para proteger as pessoas nas cidades europeias, disse Sergio Palencia, professor de urbanização na Universidade Politécnica de Valência. No dia 5 de Novembro, uma semana após as inundações, o governo nacional destinou 10,6 mil milhões de euros para ajudar as vítimas.

O plano em que Frances trabalhou expirou em 2017 porque "nenhum trabalho foi iniciado", disse à Reuters o secretário de Estado do Ambiente de Espanha, Hugo Moran. O Governo teve que começar do zero e algumas obras estão em andamento. Frances disse que algumas pessoas estavam tão inconscientes do risco que não sabiam, por exemplo, que não seria sensato descer a uma cave "para salvar o carro".

Alertas múltiplos

O primeiro alerta da AEMET para a ocorrência de uma tempestade conhecida localmente como DANA — uma depressão isolada de alta altitude — ocorreu a 25 de Outubro. Nos dias seguintes, os avisos tornaram-se mais específicos até que, a 29 de Outubro, o alerta foi actualizado para vermelho, o nível mais elevado e que significa a possibilidade de riscos elevados para a população.

Às 8h45, a delegação regional da AEMET publicou na rede social X (antigo Twitter) imagens de carros a serem arrastados pelas estradas por uma maré de água castanha.

Pouco depois do meio-dia, o organismo público que gere as bacias hidrográficas da região, a Confederação Hidrográfica do Júcar (CHJ), enviou um e-mail às autoridades regionais a informar que o caudal de água no Poyoravine tinha atingido 264 metros cúbicos por segundo. Este valor é superior ao caudal médio do rio Guadalquivir, um dos mais caudalosos de Espanha.

O CHJ disse que só pôde transmitir esta informação aos serviços de emergência regionais, que são responsáveis por emitir alertas aos cidadãos. Três especialistas disseram à Reuters que, assim que a água começasse a subir, demoraria menos de nove horas a chegar às cidades. Nas oito horas seguintes, funcionários dos governos regional e nacional, autoridades ambientais e serviços de emergência trocaram telefonemas, e-mails e realizaram reuniões de emergência.

Carlos Mazon, presidente da região e principal responsável pela emissão do alerta, tornou-se o centro da indignação perante a reacção das autoridades à tempestade porque apesar dos sinais não alterou a sua agenda.

Numa conferência de imprensa à hora do almoço, citou uma previsão meteorológica nacional que dizia que a intensidade da tempestade diminuiria por volta das 18 horas, de acordo com um tweet que apagou mais tarde.

Ao longo do dia, Mazon, membro do Partido Popular (conservador), na oposição ao governo nacional socialista, apareceu em fotografias publicadas no Twitter pela sua equipa a receber um certificado de turismo sustentável e a discutir questões orçamentais.

O seu gabinete não respondeu aos pedidos de comentário sobre a forma como lidou com a catástrofe. Mazon disse aos jornalistas, na quinta-feira, que teve um "almoço de trabalho" no dia 29 de Outubro e que esteve constantemente em contacto com a sua equipa. Às 17 horas, no momento em que as autoridades se reuniam de novo, o CHJ deu "notificação verbal" de um aumento generalizado dos caudais de água que atravessam as localidades ou na sua proximidade, segundo um comunicado.

Às 18h43, o CHJ enviou outro e-mail a alertar para o facto de o caudal de água na ravina ter atingido os 1686 metros cúbicos por segundo, mais do triplo do caudal do Ebro, o maior rio de Espanha em volume.

Doze minutos mais tarde, o CHJ indicou que o caudal de Poyo tinha subido para 2282 metros cúbicos por segundo antes de destruir o sensor que o tinha medido. "Esta quantidade de água poderia encher uma piscina olímpica a cada segundo", disse Nahum Mendez, geólogo da Universidade de Valência.

Por volta das 19 horas, muitas cidades estavam já sem electricidade, o que dificultava o envio imediato de alertas para os telemóveis ou estações de rádio, segundo as autoridades.

Maria Isabel Albalat, presidente da Câmara de Paiporta, que fica nos arredores da cidade de Valência, disse que telefonou ao delegado do governo nacional na região para lhe dizer que "a sua cidade estava a ser inundada" e que "já havia pessoas a morrer". A polícia atravessou a cidade com sirenes, luzes e altifalantes dizendo às pessoas para saírem das pontes e abandonarem as ruas.

Às 20 horas, o secretário do Ambiente espanhol, Moran, que se encontrava em viagem na Colômbia, telefonou à responsável regional pelos serviços de emergência, Salomé Pradas, para lhe dizer que existia o risco de ruptura de uma barragem.

Pradas disse à televisão local na quinta-feira que um consultor técnico sugeriu então que os serviços enviassem uma mensagem de alerta. "Como é possível que, com toda a informação disponível, as agências responsáveis pela activação dos alarmes não tenham feito nada?", disse Moran.

Mazon, o chefe regional, disse mais tarde que os dados do CHJ, que mostravam que os fluxos de água estavam a diminuir, tinham contribuído para a confusão e os atrasos. Moran, cujo departamento supervisiona o CHJ, disse à Reuters que a sua tarefa era apenas fornecer informações em tempo real às equipas de emergência e não tomar decisões sobre a sua resposta.

A presidente da Câmara de Paiporta, Albalat, disse que, quando o alerta chegou, "já estávamos mergulhados em água até ao pescoço há mais de uma hora e meia".

Protecções contra inundações

As múltiplas decisões políticas de não investir mais cedo em melhores defesas contra as inundações para proteger uma área mais vasta multiplicaram o custo económico decorrente desta catástrofe, disse Bañon, professor na Universidade de Alicante. "Este tipo de obras não é sexy, não dá rentabilidade política até que algo aconteça. Agora não têm outra opção senão realizar as obras", referiu.

Noutros países, como os Estados Unidos e o Japão, as catástrofes naturais são mais comuns e as pessoas têm uma melhor noção de como reagir, disse María Jesus Romero, professora de Direito do Urbanismo na Universidade Politécnica de Valência. Alguns habitantes de Valência recordaram inundações passadas, incluindo uma de grandes proporções em 1957. Depois disso, a cidade de Valência foi protegida por obras hidráulicas concluídas durante o regime do ditador General Francisco Franco, em 1973.

Rosario Masia, de 84 anos, residente em Paiporta, e o seu marido Cristóbal Martínez, de 87 anos, disseram que as cheias passadas não foram "nada" comparadas com esta. "Passámos por momentos difíceis, mas não como agora", disse Masia. "Estamos em pedaços".

Muitas propriedades atingidas pelas inundações foram construídas antes de 2003, altura em que foram publicadas novas orientações sobre a construção em zonas inundáveis, segundo os peritos. As orientações proíbem a construção ou incluem pré-requisitos rigorosos, incluindo o facto de as propriedades construídas em zonas inundáveis não poderem ter caves.