Moçambique: como acertar a bússola?

Ao longo destas semanas, foram muitas as vezes em que ouvi cidadãos julgarem Venâncio Mondlane um enviado de Deus. Fala bem, fala depressa, fala com raiva.

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Em certas zonas, mais votantes do que pessoas recenseadas, mais recenseados do que população em idade de votar. É evidente que houve fraude eleitoral. E de tal forma escandalosa que, ouvi dizer em Maputo, pareceu que a Frelimo se boicotava a si mesma. Com cinquenta anos de poder, nunca Moçambique conheceu, no pós-independência, outro partido ao leme do país.

Chegada há semanas, já no pós-eleições, não cheguei a estranhar os carros blindados, os soldados de cara tapada, as armas, e muito menos a contestação, já num burburinho crescente, em relação aos resultados por anunciar. É que, ainda antes de se confirmar a vitória da Frelimo nas eleições de 9 de Outubro, já a ZANU-PF, partido-irmão no Zimbabué, lhe dava os parabéns pela vitória. Antes de ser anunciada a fraude, já se evidenciava que se tinha andado a brincar com os votos. Não é à toa que o poder se faz durar.

A 19 de Outubro, foram assassinados Elvino Dias, advogado e defensor de Venâncio Mondlane, candidato presidencial, e Paulo Guambe, estrategista de comunicação do partido. No rescaldo, foram anunciadas greves, manifestações. Do Presidente da República em funções, Filipe Nyusi, nem uma palavra – ele, que viria a estar nas bocas do povo, nas ruas, nas semanas seguintes, acusado de esquemas de corrupção e enriquecimento ilícito, feitas já nos tempos em que era Ministro da Defesa do presidente anterior. Houve, isso sim, uma resposta que, em vez de ter voz, tentou calar a dos outros: do nada, os dados móveis dos telemóveis pararam de funcionar, limitando a partilha de informação, dificultando as convocatórias para protestos. Dias depois, o controlo foi mais longe, e até os computadores que acediam à internet por wifi começaram a ter problemas: primeiro, perdemos o acesso ao WhatsApp e às redes sociais; depois, recuperamos o do WhatsApp, mas os vídeos, as fotografias e os ficheiros áudio não funcionavam. O mesmo se passava com telefonemas. Com isto, o povo isolava-se a meio de uma convocatória de ajuntamento, e outros, como eu, aprendiam a instalar software que contornasse os bloqueios de comunicação.

Venâncio Mondlane convocara os protestos. Anunciado derrotado nestas eleições, anunciou-se a si mesmo vencedor. O seu percurso não deixa ninguém descansado, as suas intenções também não. Venâncio aderiu à Igreja Evangélica, tendo feito caminho como pastor. Com o que granjeou disto, tentou liderar o Movimento Democrático de Moçambique, mas foi em vão. Depressa apareceu na Renamo, o segundo maior partido do país. Ali, candidatou-se a presidente, mas sem sucesso. Criou a Comissão Aliança Democrática, recusada pela Comissão Nacional de Eleições por questões administrativas. Acabou por juntar-se ao Podemos, candidatando-se como independente. Segundo os dados divulgados, fraudulentos, não venceu a Frelimo, mas venceu o partido que o rejeitou. É neste ponto dos ziguezagues que estamos. E, se tantas voltas saltam à vista, passa-se o mesmo com a retórica: enquanto se apresenta como defensor da liberdade e da pátria, Venâncio faz soar os alertas de quem já conhece os movimentos populistas, e convém que não passe ao lado que são igualmente perigosos, instrumentalizando a revolta popular para um fim impreciso.

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Maputo esta tarde DR

Ao longo destas semanas, foram muitas as vezes em que ouvi cidadãos julgarem-no um enviado de Deus. Fala bem, fala depressa, fala com raiva. De imediato, cria no seu discurso uma relação de alteridade – existem “eles” e existimos “nós”. O “nós”, claro, é sempre o povo, que aparece como tábua-rasa, toda igual. E o que espanta é a forma como usa o colectivo como propulsão retórica, sem o assumir num todo. Ao longo destas semanas, convocava a insatisfação do povo do quinto país mais pobre do mundo, sem chegar a imiscuir-se. Sem contas em cima da mesa, proclamava-se o presidente eleito, numa estratégia, de si só, já populista e pouco séria: uma coisa é verificar a fraude eleitoral, outra é afirmar resultados não provados por contadores isentos. Sem uma voz colectiva, dava “orientações” ao povo, paralisando a economia, criando protestos, aumentando a sensação de insegurança. Às portas da manifestação convocada para hoje, ao fim de uma semana de protestos, afirmava que marcaria presença em Maputo esta madrugada, altura em que chegaria ao aeroporto. À volta, parecia que nenhum dos manifestantes contestava isto. Mas era evidente que Venâncio não podia chegar: tendo afrontado directamente um regime corrupto e autoritário, cujo governo o acusava de vandalismo e violência, seria preso assim que visse a luz de Maputo. Sem mais, garantia ainda assim que estaria presente nas manifestações, ao lado do povo, quando o risco de uma bala seria uma certeza. De manhã cedo, pedia apoio nas manifestações. À tarde, informou que cancelava a vinda a Maputo por motivos de segurança. Difícil cogitar-se que alguma vez pudesse ter pensado em aparecer, ciente estava dos perigos que corria. Assim sendo, cumpre dosear-se a pertinência deste circo, e ainda pesar-se a legitimidade de, ao longe, seguro, Venâncio Mondlane ter continuado a pedir o apoio do povo num sentido que apoiava o outro: contestar a fraude eleitoral só para que lhe fosse estendida a passadeira do poder. Isto, claro, um dia depois de ter comemorado a vitória de Trump, elogiando a “alternância do poder” que voltou a pôr na Casa Branca quem, anos antes, fez o que fez para de lá não sair.

Em Maputo, milhares corriam os seus riscos, movidos pela esperança da democracia ou desespero, levando com uma polícia autoritária, violenta, militarizada, que disparava a eito, dispersava multidões e incendiava os ares da capital de Moçambique com gás lacrimogéneo. Ia a tarde a meio quando Venâncio Mondlane, na pacatez dos seus canais digitais, incentivou, pediu, ordenou aos manifestantes (orientou), que não saíssem da cidade enquanto não fosse reposta a verdade. Mas tudo isto sabia a muito pouco, ao discurso inflamado do populismo que vai beber à revolta e não vê a realidade: as avenidas 24 de Julho e Julius Nyerere, que Venâncio tinha pedido ao povo para inundar, estavam desertas. De vez em quando, passavam polícias a pé. Outras vezes, carros blindados. Vindos de longe, ouviam-se tiros às vezes, e Maputo fumegava nos acessos, com pneus queimados para cortar estradas ou criar barricadas. A revolução prometida, incentivada de longe, sem estrutura, sedenta de caos, morria na fonte, e o povo lutava por um messias que nunca teve intenção de se lhe juntar. Chegada a tarde ao fim, só havia uma pergunta: e agora?

E agora ninguém sabe. Moçambique, que pede uma mudança, ainda não acertou a bússola. Nem o amanhã é coisa certa. E, do propulsor de tudo, não há uma estratégia nem clareza.

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