Os bons velhos tempos

A comunidade das democracias acabou com a reeleição do Presidente Trump, que representa uma revolução na política internacional.

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Durante o século XX, os Estados Unidos salvaram três vezes os europeus de si próprios e criaram, em conjunto com as democracias europeias, uma comunidade transatlântica que impôs a paz democrática nas relações entre os velhos Estados da Europa.

Em 1917, o Presidente Wilson decidiu intervir na Grande Guerra e os Estados Unidos puderam assegurar a vitória da Grã-Bretanha e da França contra a Alemanha e a Áustria-Hungria. Nos anos seguintes, a Sociedade das Nações não conseguiu impedir a ressurgência das potências revisionistas, porque os Estados Unidos não quiseram fazer parte da organização da paz. Em 1941, o Presidente Roosevelt decidiu intervir na II Guerra Mundial e os Estados Unidos puderam assegurar a vitória da Grã-Bretanha e da França contra a Alemanha nazi.

Nos anos seguintes, as Nações Unidas não conseguiram impedir a ressurgência das potências revisionistas comandadas pela União Soviética. Em 1947, o Presidente Truman decidiu intervir na Guerra Fria para defender as democracias europeias e criou, sucessivamente, o Plano Marshall e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), que tornaram possível a reconciliação entre a França e a Alemanha e o processo de integração das Comunidades Europeias. No fim da Guerra Fria, o Presidente Bush decidiu intervir na Europa para garantir a unificação diplomática da Alemanha, a retirada das tropas soviéticas da Europa do Leste e o fim pacífico do império da Rússia soviética.

No post-Guerra Fria, a comunidade das democracias pôde apresentar-se como um exemplo para o futuro da ordem internacional liberal. Não obstante, as divisões entre os Estados Unidos e os seus aliados europeus, nomeadamente a Alemanha e a França, prejudicaram a consolidação da nova ordem e deixaram aberto o caminho para a ressurgência das potências revisionistas.

A erosão da ordem multilateral das democracias foi acelerada quando a Rússia invadiu a Ucrânia, com o apoio, ou a cumplicidade, da China. Todos consideravam inevitável a derrota da Ucrânia. Em 2022, o Presidente Biden decidiu intervir para defender as democracias europeias e, com o G7, a NATO, a União Europeia e o Grupo de Contacto para a Defesa da Ucrânia conseguiu mobilizar o conjunto dos aliados europeus e asiáticos dos Estados Unidos para garantir a sobrevivência da Ucrânia e impedir a vitória da Rússia. A Suécia e a Finlândia entraram na NATO, a União Europeia decidiu abrir as suas portas à Ucrânia, o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália demonstraram a sua solidariedade na luta contra a coligação revisionista das autocracias continentais.

A comunidade das democracias acabou com a reeleição do Presidente Trump, que representa uma revolução na política internacional. Os Estados Unidos continuam a ser a principal potência, mas desistiram da internacionalismo liberal, substituído pelo primado da soberania e da defesa do interesse nacional. A República norte-americana não está mais disposta a fazer os sacrifícios necessários para defender a ordem internacional e não tem os recursos indispensáveis para enfrentar sozinha o novo eixo formado por Pequim, Moscovo, Teerão e Pyongyang, cuja dinâmica ofensiva ficou demonstrada no dia da eleição presidencial com os primeiros combates entre tropas ucranianas e as tropas norte-coreanas nas fronteiras da Europa.

Não é possível exagerar as consequências da viragem norte-americana. A Guerra Russo-Ucraniana confirmou que a Europa não é capaz de garantir a sua própria segurança sem os Estados Unidos e sem a NATO, e que os Estados europeus continuam a não ser capazes de se unir, se não puderem contar com a direcção estratégica e política do seu aliado indispensável. Por certo, os responsáveis políticos europeus estão há meses a preparar-se para a possibilidade da reeleição de Trump, mas parecem estar tão impreparados como no dia em que começaram a sua preparação. As três principais potências europeias estão divididas, o velho eixo formado por Berlim e Paris deixou de existir e não há sequer uma estratégia comum credível para preencher o vazio que a próxima retirada norte-americana vai deixar na Ucrânia.

Os Estados Unidos deixaram de travar as guerras dos outros – na Europa ou no Médio Oriente. A sua prioridade, numa linha de continuidade essencial, é conter a China e impedir a hegemonia chinesa na Ásia. A Europa e os aliados europeus são relevantes na exacta medida em que puderem contribuir para o objectivo central da estratégia norte-americana.

Os bons velhos tempos chegaram ao fim.

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