O perigo da linguagem empresarial na medicina: um alerta!

A linguagem não serve somente para expressar acontecimentos ou pensamentos, também pode ser usada para tentar, por vezes de forma perversa, mudar a realidade.

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Um artigo publicado por dois conceituados médicos americanos, Pamela Hartzband e Jerome Grupman, ambos da Harvard Medical School, de Boston ("The New Language of Medicine", The New England Journal of Medicine 365;15, 2011), ajudou-me a refletir sobre os potenciais malefícios da nova linguagem médica e a organizar este texto. Mas, acima de tudo, deu-me uma enorme confiança ao sentir-me em total sintonia com o pensamento de autoridades nestas matérias.

A questão central deste texto é responder à pergunta: poderá usar-se em cuidados de saúde a terminologia do foro da economia e negócio, passando-se, entre muitas outras alterações, a designar os doentes como “clientes ou consumidores” e os médicos e enfermeiros como “fornecedores ou prestadores” (health care providers) ou a atividade cirúrgica do hospital como “linha de produção cirúrgica”?

Não!

Infelizmente, esta linguagem pode contribuir para induzir à aceitação do que não é aceitável. Esta não está a ser usada apenas por gestores ou decisores da saúde, em instituições públicas e privadas, mas também tem contagiado a comunicação social, revistas médicas e até apresentações clínicas. Felizmente, em Portugal, vamos tendo uma cultura mais resistente a estas “inovações”, mas, se nada se fizer, vão acabar por se instalar de forma generalizada, com efeitos nefastos.

Esta tendência perigosa tem origem multifatorial, sendo talvez a mais determinante o crescimento exponencial dos custos da medicina, passando esta a centrar-se mais na contenção destes do que nos doentes.

Aceitar estas novas designações revela desconhecimento da essência psicológica, espiritual e humanística da medicina, mas talvez apenas por quem não está ou esteve seriamente doente.

A linguagem não serve somente para expressar acontecimentos ou pensamentos, também pode ser usada para tentar, por vezes de forma perversa, mudar a realidade. Todos os totalitarismos têm uma linguagem própria destinada a condicionar comportamentos das pessoas.

A expressão da relação entre médicos, enfermeiros ou outros profissionais da saúde e os doentes está a ser trocada, em termos linguísticos, pela dos negócios e transações comerciais. O doente é o cliente comprador e o médico é fornecedor ou prestador.

Cada profissional da medicina, no sentido lato da palavra, seja médico, enfermeiro, farmacêutico, nutricionista, técnico ou qualquer um dos outros profissionais indispensáveis à concretização com sucesso de cuidados multidisciplinares complexos e exigentes, tem o seu treino que lhe confere aptidões específicas, que não cabem na designação de fornecedor.

Esta designação pode levar as pessoas a pensar que os diferentes profissionais da medicina são intermutáveis e que os cuidados são um pacote fornecido ao consumidor ou cliente como qualquer produto de conforto, sujeito às mesmas regras de publicidade.

Também pode pôr em causa o papel do médico, profissional com os conhecimentos e aptidões necessários para ajudar os doentes a perceber as razões da sua doença e as possíveis formas de a tratar, mas também o papel do enfermeiro que tem aptidões únicas para cuidador com proximidade do doente, o que é essencial para a sua cura. Ao pôr-se em causa este papel do médico e do enfermeiro poderá estar a ser corroída a confiança indispensável à relação com os doentes.

A concretização da industrialização dos cuidados saúde leva à sua padronização, passando os hospitais a funcionar como fábricas e a designação de médico, enfermeiro e doente a ser substituída pela terminologia adequada a esta nova ordem.

Neste ambiente “de eficiência industrial”, há uma tendência para absolutizar o valor de “guidelines”, protocolos ou algoritmos que, embora possam constituir uma grande ajuda, são sempre de importância relativa.

Os dados obtidos através da evidência científica são objetivos, mas a sua aplicação tem uma componente subjetiva muito importante.

A este propósito, um dos mais conceituados especialistas a nível mundial em Medicina Intensiva, Jean Louis Vincent, refere que um dos perigos de algoritmos e “bundles” nos cuidados intensivos é o de privar os doentes da intervenção de médicos altamente experientes e diferenciados. Refere ainda que os algoritmos podem ser úteis em contextos em que os recursos médicos são escassos e pouco diferenciados.

É por estes motivos que nas “guidelines” começam a aparecer avisos de que a sua aplicação não dispensa o juízo clínico e a decisão do médico, caso a caso.

Quando estamos doentes, queremos ser tratados como pessoas, e não como consumidores pagantes, para que o nosso tratamento possa ser individualizado de acordo com os nossos valores. A medicina exige uma ética de máximos, e não dos mínimos indispensáveis.

Um doente indigente, sem-abrigo, sem (aparentes) habilitações literárias, passou por mim no hospital e disse-me: “Sr. doutor, quero fazer-lhe uma queixa”. Pedi-lhe que viesse ao meu gabinete e ele diz-me: “Quero queixar-me da Segurança Social.” “Não lhe deram o subsídio?” “Não foi nada disso. É que sou tratado como um cidadão e não como um ser humano.”

Conclusão

A “nova linguagem” não é apanágio do setor público ou privado. Infelizmente está a entrar paulatinamente em ambos.

Mas nunca deixemos de ter esperança porque, por um lado, podemos contar com gerações de médicos que, munidos da força da juventude, da razão, da inteligência e do altruísmo, nunca abdicarão do ideal que os fez ser médicos. Isso terá imensa força. Por outro lado, confiamos que o médico, o enfermeiro, ou qualquer profissional da medicina, bem como os gestores e decisores políticos, serão fieis uma conduta profissional correta e indissociável da componente ética e que resistirá a qualquer tentativa de intromissão da gestão das instituições, seja de que natureza forem.

Agradeço muito ao Sr. Professor Walter Osswald a revisão crítica e rigorosa deste texto e que seguramente contribuiu para o melhorar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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