Pretérito mais-que-perfeito

Ele estivera lá, nos melhores e nos piores momentos da literatura, da história, e sempre soubera que, mesmo que ninguém o quisesse, era ele quem garantia que o passado continuava a ter sentido.

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"Ele fora fundamental na poesia, na prosa clássica, nas cartas de amor de outros séculos" Suzy Hazelwood/pexels
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Sempre fora difícil ser o Pretérito Mais-que-Perfeito. Ele vivera num estado de melancolia constante, sabendo-se necessário, mas ignorado. Um tempo verbal anacrónico e solitário. Não conseguira ser a estrela. Vivera à sombra de uma língua que se modernizara e que o deixara para trás, como um parente distante de quem se fala só por obrigação, num murmúrio desconfortável. O Pretérito Mais-que-Perfeito vivera feliz em tempos gloriosos, tempos onde fora mais realizado do que nunca, os saudosos tempos de Outrora. Outrora fora a única que o compreendera. Fizera-lhe uma promessa que nunca se cumprira. E viveram um amor profundo que, claro, acabara. Ela desaparecera dizendo que precisava de um tempo. Ele não compreendera, porque ele sempre fora isso mesmo, um Tempo. Mas não era dele que ela precisara.

Sim, ele fora fundamental na poesia, na prosa clássica, nas cartas de amor de outros séculos. Ele estivera lá, nas linhas febris das despedidas dos amantes, nos dramas históricos e nas confissões sussurradas à luz de velas. Ele participara em versículos bíblicos, sermões e sonetos. Ele ajudara a compor revoluções e tragédias. Fora o guardião do passado longínquo, o fiel narrador de histórias já acabadas. Fora necessário numa época em que cada frase pedira a sua presença. Mas ninguém se interessava mais pelo que ele ajudara a compor. Agora só era invocado por padres ou por maus escritores. Nem os juristas o queriam mais.

Triste destino que ele tivera! O de ser sublinhado a azul pelo Word. O Word, impiedoso, nunca sentira remorso ao corrigi-lo. Apenas mais um que nunca o reconhecera devidamente. Nunca lhe dera valor. Sublinha “reconhecera”, por exemplo, e sugere “reconhecerá”. Má sorte que lhe calhara, esse desprezo, essa substituição pelo Futuro. O Futuro, que sempre se rira dele. Que sempre zombara dele e o chamara de antiquado e convencido, por ter a audácia de se intitular “mais que perfeito.”

O Pretérito Mais-que-Perfeito sempre olhara para os jovens tempos verbais — o Presente Contínuo, flexível e disponível, ou o Futuro, sempre otimista — e sentira-se como um par de sapatos de couro antigo entre ténis modernos. Quem se interessaria por ele, que carregara o peso de algo ultrapassado, como se o seu próprio nome já fosse uma advertência?

E sempre fora incapaz de esconder a inveja que sentira pelo Pretérito Imperfeito, que, apesar de também ser um nostálgico, sempre fora tolerado e, até, celebrado. O Imperfeito, esse galã, com o seu ar de “ah, era tão bom, e não acabou”. Já, ele, o Mais-que-Perfeito, era apenas o guardião do que já estava lá, na prateleira de baixo, perto dos discos de vinil arranhados.

Num mundo que exalta as imperfeições e a beleza do incompleto, o Pretérito Imperfeito tornara-se uma espécie de herói romântico, com as suas arestas suaves e o seu charme de tempo em construção. Mas o Pretérito Mais-que-Perfeito sempre estivera condenado a ser o tempo dos arrependimentos, das certezas já mortas, das coisas que não se repetiriam. E isso, pensara ele, era uma condenação pior do que qualquer imperfeição.

Mas ele dera significado ao que passara, ao que estava atrás do que já estava atrás. Ele estivera lá, nos melhores e nos piores momentos da literatura, da história, e sempre soubera que, mesmo que ninguém o quisesse, era ele quem garantia que o passado continuava a ter sentido. A sua solidão era, portanto, inevitável, mas tinha uma dignidade própria, uma espécie de nobreza melancólica, um castelo em ruínas onde ainda se ouve o eco de uma festa que acontecera.

E assim, resignado, deixara-se ficar, como um fantasma. Conformara-se ao papel de aristocrata decadente, sempre presente no que já passara, mas nunca o suficiente para ser plenamente lembrado. A sua função era a de preservar o que se perdera. E por ironia, ele é que se perdera. Restava-lhe preservar-se a ele mesmo. O Pretérito Mais-que-Perfeito, como sempre, ficara para trás.

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