Aguiar-Branco ataca cultura de cancelamento e pede menos visão conflitual na política

Presidente da Assembleia da República defende que regime de incompatibilidades é demagógico e degrada a política.

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Aguiar-Branco diz que "para melhorar a capacidade de recrutamento para a actividade política tem de se tocar no regime das incompatibilidades e no estatuto dos titulares de cargos políticos" Rui Gaudêncio
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O presidente da Assembleia da República afirmou esta terça-feira que nunca será censor da intervenção dos deputados, pediu mais consensos, sobretudo entre moderados, e insurgiu-se contra a visão conflitual estéril e a cultura de cancelamento na política.

José Pedro Aguiar-Branco falava num almoço debate promovido pelo International Club of Portugal, em Lisboa, numa intervenção inicial subordinada ao tema "Bom e mau parlamentarismo".

Na sua intervenção, o antigo ministro social-democrata defendeu o valor cimeiro da liberdade de expressão e salientou que o parlamento "é o lugar de debate e de expressão das diferenças, em que cada um assume em plenitude a responsabilidade do que pensa e do que diz".

"O julgamento político da apreciação, de aprovação ou de repúdio pelo discurso político que é expresso por um deputado é dado pelo povo português, através do voto em eleições livres, directas e universais. Nunca serei um censor do uso da palavra. O julgamento será sempre dos cidadãos no voto", frisou.

No seu discurso, o presidente da Assembleia da República assinalou também que os principais avanços na democracia portuguesa se fizeram com amplos consensos envolvendo as principais forças políticas, apontando como exemplos as revisões constitucionais, a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia ou as leis estruturantes em sectores como a justiça, saúde ou a defesa.

Neste contexto, partilhou com os presentes no almoço debate que um estudante de Vila Real o questionou na segunda-feira sobre como foi possível uma discussão tão acesa entre PSD e PS, no âmbito do Orçamento do Estado para 2025, por causa da descida de um ponto percentual no IRC.

"Esse estudante fez uma constatação óbvia. E nós, às vezes, aqui, na bolha em que nos movemos, não temos a percepção exacta do que os cidadãos pensam. Ou seja, o país real, o país concreto, não percebe aquilo que afasta quem, durante tantos anos, foi capaz até de acabar com o Conselho da Revolução, provavelmente um acordo mais difícil de se fazer do que uma reforma fiscal para os próximos cinco anos", comentou.

Depois, deixou um aviso: "Creio sinceramente que o país está cansado de uma visão conflitual estéril da política".

"Uma visão em que o debate ganha apenas uma conotação moral e em que deixamos de dizer que não concordamos com o adversário e passamos a assumir que ele tem más intenções, que ele está capturado por interesses, que não é legítimo, que é pouco ético. Em suma, que não se pode conversar com o nosso adversário", completou.

O antigo ministro social-democrata lamentou neste contexto que se gaste "muito tempo a caricaturar as intenções dos adversários e pouco tempo a construir pontes para acordos"

"A teoria do cancelamento é uma aberração em democracia pela censura que faz ao que considera politicamente incorrecto, ou pela sistemática tentativa de obstrução das boas condições à livre exposição de ideias diferentes", rematou, recebendo uma salva de palmas.

José Pedro Aguiar-Branco defendeu em contraponto que se deve encarar "com naturalidade democrática a fragmentação das representações parlamentares" - fenómeno que "muitos receavam ser bloqueadora do funcionamento da Assembleia da República".

"Mas a que o sistema constitucional tem sabido responder. Temos de conviver bem com a diferença quando ela é fruto da legitimidade democrática", acrescentou.

Regime de incompatibilidades é "demagógico"

Na sua intervenção, o presidente da Assembleia da República qualificou como "demagógico" o regime de incompatibilidades em vigor e defendeu a sua revisão para melhorar a qualidade de recrutamento dos titulares de cargos políticos.

"Para melhorar a nossa capacidade de recrutamento para a actividade política tem de se tocar no regime das incompatibilidades e no estatuto dos titulares de cargos políticos. Esta afirmação só me responsabiliza a mim, não tenho a preocupação de ser mais ou menos popular, mas é fundamental qualificar a participação cívica e a disponibilidade para a causa pública", justificou.

De acordo com Aguiar-Branco, foram criadas tantas incompatibilidades ao exercício da actividade política que "é quase impossível alguém ter condições para exercer um cargo político".

Foi mesmo mais longe: "Só está em condições para isso se não tiver mais nada para fazer, mas a política prescinde bem de quem não tenha nada para fazer".

O presidente da Assembleia da República advertiu que se poderá estar a caminhar de forma perigosa "para a funcionalização da intervenção política, o que contribui para a degradação da qualidade".

"Devemos ser exigentes na transparência, no registo de interesses, no conflito de interesses e na punição de quem os viola, mas não este regime de incompatibilidades", declarou, antes de o classificar como "demagógico" e de receber palmas da maioria dos presentes neste almoço debate.