“Não partilhes”: a violência sexual baseada em imagens acaba em ti
Estamos perante um problema não de ausência de legislação, mas sim de aplicação da letra da lei.
Em Portugal, uma em cada dez estudantes do ensino superior já sofreu ameaças de divulgação de imagens íntimas e seis em cada dez mulheres já foi vítima de violência sexual baseada em imagens. Mas a realidade é bem mais grave que estes números estatísticos e para isso basta olhar para o que se passa no Telegram, onde diariamente milhares de crianças, raparigas e mulheres têm a sua intimidade exposta em alta escala e são objetificadas, sexualizadas e humilhadas, sem que haja qualquer consequência para quem expõe.
Grupos privados com mais de 70 mil homens são palco de partilhas diárias sem consentimento onde se expõe conteúdos de pornografia de vingança com ex-parceiras, namoradas de amigos ou desconhecidas, acompanhadas muitas vezes da partilha de dados pessoais da vítima, como endereços das respetivas redes socais, contactos telefónicos, local de trabalho ou área de residência, bem como de informações sobre os horários da sua rotina diária.
Para além da violação grosseira dos direitos destas mulheres, chegam a ser partilhadas fotos com menores ou de mães com filhas e feitos comentários dignos do grau zero da decência.
Grupos como estes demonstram que hoje o fenómeno criminal da violência sexual baseada em imagens extravasa em muito a clássica situação da chamada “revenge porn”, ou seja, nude enviada a um namorado e depois repartilhada em massa. Esta mudança estrutural de figurino foi levada em conta pela Assembleia da República que, ainda no ano passado, aprovou uma lei que reforçou a proteção das vítimas desta forma de violência sexual, com a previsão da punição com pena de prisão que pode ir até aos cinco anos, com a possibilidade de este crime não depender de queixa em situações em que o interesse da vítima o aconselhe e com a consagração de obrigações de denúncia e de bloqueio de conteúdos aplicáveis a prestadores intermediários de serviços em rede como sejam o Telegram ou a Meta.
Contudo, volvido mais de um ano de vigência do diploma, a existência de grupos do Telegram como os anteriormente referidos e o facto de não se ter alterado em um milímetro a forma como a sociedade olha para os homens que partilham e acedem a este tipo conteúdo, levam-nos a crer que estamos perante um problema não de ausência de legislação, mas sim de aplicação da letra da lei.
Esta é uma situação que se estende a outras formas de violência sexual, como é o caso da violação e do abuso sexual, em que, apesar de existir um quadro legal garantístico dos direitos das vítimas, se verifica, por exemplo, que não existem kits de recolha de evidências de abuso sexual ou de violação, em diversos hospitais do SNS, obrigando a que os médicos tenham de improvisar soluções ad hoc ou que as vítimas se tenham de deslocar centenas de quilómetros para realizarem os exames forenses, o que leva muitas vezes à destruição de vestígios.
Tendo presente que a violência sexual, em particular contra mulheres, nas suas muitas dimensões, continua a ser um flagelo, o PAN agendou o debate parlamentar para hoje, sobre as melhorias necessárias a tornar mais consequente a legislação de proteção das vítimas de violência sexual baseada em imagens.
Este tema tem de nos convocar a todas e a todos, mulheres e homens, para assegurarmos mais apoio especializado às vítimas, com a criação de gabinetes de apoio e pontos de informação e inclusão desta forma de violência nos instrumentos de políticas públicas nacionais para a juventude, prevenção e combate à violência contra as mulheres e tráfico de seres humano; contribuir para uma maior sensibilização e consciencialização para as diversas dimensões desta forma de violência, com a implementação de ações de formação específicas destinadas a magistrados e outros agentes de justiça.
Para além da responsabilidade individual, as plataformas digitais também têm aqui um importante papel a cumprir e a responsabilidade social de contribuir para a erradicação destes fenómenos.
Por essa razão, o PAN propôs a audição parlamentar de representantes do Telegram e da Meta, com jurisdição sobre Portugal, para tentar compreender em que medida estão a cumprir a legislação aprovada em 2023 e que reportes têm feito ao Ministério Público quanto a situações de grupos como os referidos em que nenhuma menina, rapariga e mulher está a salvo deste tipo de violência e da voracidade do machismo e dos machistas.
Apesar do caminho que temos feito até aqui relativamente à violência sexual, ainda temos um longo caminho a percorrer e esta é uma responsabilidade partilhada. Mas uma coisa é certa, a partilha não consentida de imagens termina desde logo em ti: que optas por não partilhar.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico