Do genocídio e da hipocrisia de Portugal
Expliquem-me como é que se defende a politicamente correcta solução dos dois Estados, quando só se reconhece um deles? Expliquem-me como é possível ser tão hipócrita?
A causa que decidi abraçar, com o tempo passado em missões humanitárias além fronteiras, é a humanidade, o humanismo, o humanitarismo, que por sua vez depende de apenas duas coisas: 1) da ciência, que é a verdade que nos une desde a molécula ao universo; e 2) dos direitos humanos, definidos pelo Homem em 1948 quando escritos pela primeira vez de forma oficial, e que se resumem na premissa que todas as vidas são iguais e têm o mesmo valor – mas infelizmente estamos a anos-luz de que isso aconteça.
Não tenho filiação política, nem pretendo ter, e guardo as minhas opiniões partidárias para mim, excepto quando cruzam a ciência ou os direitos humanos, como é o caso, gritante, revoltante e atroz da guerra entre Israel e Hamas. Tornar a ciência ou os direitos humanos numa arma política é a melhor forma de os destruir, veja-se p.e. nos EUA como a “opinião” de que o governo de Biden é que está a criar os furacões que devastaram o sudeste do país é aceite por cerca de metade da população. A melhor forma de eliminar a imensamente difícil questão de como combater as alterações climáticas que exponenciam os fenómenos climáticos extremos é dizer que elas não existem. Fácil. Fim de conversa. O “não existem” já ganhou à anterior teoria de que “foi deus para castigar isto ou aquilo”.
O mesmo se está a passar com total negação dos direitos humanos dos palestinianos por parte do Ocidente, questão em que Portugal consegue ser dos piores e mais vergonhosos exemplos. Os animais no Ocidente têm mais direitos do que as pessoas em Gaza nos últimos 12 meses. “Israel está a cometer crimes contra a humanidade”: é assim tão difícil dizer isto? Isto são factos, não são opiniões, até porque os soldados israelitas fizeram o “favor” de filmarem inúmeros crimes de guerra e colocá-los nas redes sociais, tal como bem retrata o documentário Gaza, da Aljazeera. A única coisa que está em discussão em termos de direito humanitário internacional é se, dentro dos crimes contra a humanidade cometidos por Israel, se se trata de um genocídio ou não – e pelo que leio dos especialistas, a pedra angular da decisão sustenta-se na intenção.
Há alguma dúvida de que o governo de Netanyahu e os seus ministros mais influentes têm intenção de eliminar/expulsar daquela “terra prometida”, não sei por quem, todos que não sejam do “povo escolhido” por alguém que nunca ninguém viu? O partido Likud tem na sua carta de princípios que o objectivo é que toda aquela terra seja controlada por judeus, e nós ocidentais vociferamos cheios de vontade que Israel é a única democracia liberal do Médio Oriente. Não é. É mentira. É uma etnocracia. É uma teocracia, o que contraria os princípios mais fundamentais da democracia, por discriminar as pessoas na lei, da mesma forma que algumas repúblicas islâmicas o fazem, e nós, e bem, criticamos.
É sempre preciso dizer que ser pró-Palestina não é defender o Hamas, nem é ser anti-Israel. Eu odeio o Hamas, e digo-o com experiência própria porque já tive o desprazer de lidar com eles e ver o seu extremismo, fanatismo e maldade exercida contra o seu próprio povo. Não deixa de ser irónico ver que há pessoas mais à esquerda que defendem o Hamas sem perceberem que este tem todas as características de extrema-direita: é ultranacionalista, é extremista religioso e instrumentaliza a religião para fins políticos. Tem uma identidade baseada na supremacia perante tudo o que não seja muçulmano. O Hamas também tem um detalhe “curioso”, penso que é o único grupo terrorista que consegue ter o apoio dos extremistas sunitas e dos extremistas xiitas, que se odeiam entre si.
O que me revolta é que somos peremptórios ao catalogar o Hamas como grupo terrorista, mas não só não temos a coerência e honestidade de dizer que Israel é um Estado terrorista, como ainda legitimamos um genocídio que está a acontecer em directo na televisão, e face ao qual os media portugueses são claramente facciosos, a favor do genocídio. Vou dar dois exemplos, mas podia dar imensos. 1) o Henrique Cymerman não faz jornalismo, faz propaganda sionista. Está no seu direito de o fazer, mas não é jornalismo. Ele sabe mais sobre o Médio Oriente a dormir do que eu acordado, mas chora cada morte israelita como deve ser chorada, com nomes, histórias de vida, famílias enlutadas, e depois os palestinianos a morrer aos milhares são apenas números, tal como sabemos tudo sobre as 2977 vítimas do 11 de Setembro, mas depois nem sabemos bem se foi 1 milhão ou 2 milhões que morreram no Afeganistão como resposta numa guerra que agora todos concordam que foi um erro. 2) Eu vi e ouvi o coronel José Henriques na SIC-N quando ainda havia a dúvida se Israel ia ou não invadir Gaza, a dizer algo do género: “Israel vai invadir Gaza, e vai terraplanar Gaza e quando acontecer eu vou bater palmas.” E bateu palmas a este pensamento na televisão em directo. Virem o tabuleiro ao contrário, imaginem o que aconteceria a um comentador que dissesse que batia palmas se terraplanassem Israel?
Ficamos perplexos quando Al Bagdhadi, ex-líder do ISIS disse que o califado viria até à Península Ibérica, da mesma forma que achamos Dimitri Medvedev alucinado, por dizer que a Rússia será de Lisboa a Vladivostok… Mas depois temos elementos do governo de Netanyahu que defendem a “Grande Israel” cujo mapa rouba a totalidade do Líbano, Síria, Iraque e ainda partes da Turquia e Arábia Saudita, e ninguém se insurge contra estes maníacos.
O Hamas é um grupo terrorista pela ideologia genocida e pelas táticas de guerra que usa, ao matar mulheres e crianças sem critério. Israel mata pelo menos 40 vezes mais (para já) mulheres e crianças, com ministros israelitas a chamar-lhe animais, outros a dizer que em Gaza é tudo Hamas e não há palestinianos inocentes e outros a propor o uso de uma bomba nuclear, e nós portugueses nem sequer temos a coragem de projectar na fachada do Parlamento a bandeira da Palestina em homenagem às 42.000 vítimas das quais 17.000 são crianças (a revista médica Lancet, do Reino Unido, uma das mais prestigiadas do mundo estima que, com mortes por fome e falta de cuidados de saúde, o número de mortes causadas por Israel em Gaza deve estar na ordem dos 200.000), não somos capazes de condenar Israel com as letras todas, e não temos a coragem de reconhecer o Estado da Palestina (como fizeram a Espanha, Irlanda, Noruega) com a desculpa de Paulo Rangel, a mais esfarrapada que já ouvi: “Ainda não sabemos bem quais são as fronteiras”. Mas de Israel, pelos vistos, já todos sabemos, desde a Nakba de 1948. Expliquem-me como é que se defende a politicamente correcta solução dos dois Estados, quando só se reconhece um deles? Expliquem-me como é possível ser tão hipócrita?
Não é só Gaza, nem só a Palestina e agora o Líbano – é toda a humanidade que chora lágrimas de sangue, e toda a humanidade, o Ocidente em particular, vai pagar esta desumanização de um povo, só porque é árabe, muçulmano e pobre. Isto é muito simples: se nós não damos valor àquelas vidas humanas, não temos qualquer património moral se eles não derem valor às nossas. Isto vai sair muito caro ao Ocidente e durante muitas décadas, para além de que a banalização de um genocídio durante um ano, com a nossa total cumplicidade, dessensibiliza as pessoas para todo o sempre, para outras carnificinas como as da Ucrânia, do Sudão e outras que hão-de vir.
Uma sondagem nos EUA diz que 66% dos cristãos evangélicos americanos apoiam este belicismo sionista de Israel versus apenas 33% dos judeus americanos. Isto diz tudo. Não é sobre religião, é sobre poder.
Relembro que o fim do regime do apartheid na África do Sul só foi possível quando a comunidade internacional tornou insuportável o apoio a este regime por parte dos EUA e do Reino Unido. Como tal, a frase “eu não posso fazer nada” para que milhares e milhares de crianças não morram ou sofram o inimaginável é a maior mentira que podemos dizer a nós próprios. A nossa opinião conta, é tudo o que conta para parar este massacre.
O mais grave e mais perigoso são os ataques a António Guterres por dizer a verdade. Descredibilizarmos a ONU, que foi criada para mediar a paz entre os povos, leva-nos a desprezar por completo o direito internacional para qualquer lugar do planeta.
Isto vai ficar para a história e os nossos filhos vão ter vergonha de quem nada fez para parar um genocídio, porque ou se é pró-Palestina ou se é pró-genocídio.
Ser neutro é dar força ao opressor, e em Portugal o silêncio é ensurdecedor.
(Estou doente com o que parece ser um síndrome de Lyme pós-tratamento, com vários sintomas desde há quatro anos, e já não exerço medicina há cerca de três anos porque tenho que passar 95% do dia deitado, para sobreviver à dor que já chegou a níveis em que implorei por eutanásia. Desde há três semanas, após uma segunda cirurgia, passei do desesperado ao péssimo e, quando assim é, o péssimo parece bom, já consigo “respirar”. Só atenuou um sintoma, nem sei se é duradouro, e nada posso fazer para tratar esta doença, mas enquanto conseguir, mesmo com o cérebro a funcionar a 10 ou 20% (já sei que vão usar isto para me atacar, mas não tem mal) tentarei trazer o privilégio que tive de já ter visto tantos mundos que poucos conhecem, para usar as minhas palavras para que os portugueses vejam o mundo com mais coração.)