A licença parental de seis meses paga “é um legado” de Carina Pereira

Mãe e autora de um blogue, criou uma petição, que não teve seguimento, em 2016. Avançou então com uma iniciativa legislativa, que, após a sua morte, em 2021, viria a ser posta a andar por outros.

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Carina Pereira, em 2016, com os dois filhos, em vésperas de ver discutida na Assembleia da República a petição que lançou em defesa da licença de maternidade até aos seis meses Martin Henrik/Arquivo
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Quando, em 2016, Carina Pereira viu o texto da petição online que lançou ser debatido sem consequências, decidiu que não era ainda altura para baixar os braços. E voltou à carga com uma iniciativa legislativa de cidadãos, redigida em 2018, que prevê o alargamento da licença de parentalidade inicial paga a 100% de 120 para 180 dias (a 80%, de 150 para 210 dias) e que viria a ser aprovada na semana passada na generalidade. O diploma, que segue agora para discussão na especialidade, foi subscrito por quase 24 mil cidadãos (são necessários 20 mil para que seja apreciado).

A ideia, explicava Carina Pereira ao PÚBLICO, em 2016, em vésperas de assistir ao debate em torno da ainda petição, surgiu depois de verificar a contestação em torno do facto de o país manter uma licença de maternidade paga a 100% de quatro meses quando as recomendações da Organização Mundial da Saúde vão no sentido de a amamentação ser exclusiva até aos seis meses.

Com dois filhos e tendo amamentado ambos até à idade recomendada, Carina, que era subdirectora de uma escola de línguas no Porto, teve de, para isso, prescindir de parte do seu rendimento: com o primeiro filho usufruiu de cinco meses de licença (pagos a 80%) e mais 15 dias de licença sem vencimento que juntou a dias de férias; no segundo, voltou a tirar os cinco meses, voltando a prescindir de 20% do rendimento, e ainda um sexto, pago a 25%. “É complicadíssimo para a maioria das famílias”, constatava então.

Da frustração à criação da petição, depois de ter pensado “se nós só reclamarmos é que não acontece nada”, foi um passo — num instante, o documento ultrapassou as quatro mil assinaturas necessárias (chegou ao Parlamento, em 2016, com mais de 30 mil). E quando foi chamada à Comissão Parlamentar de Trabalho e Segurança Social, muniu-se de apoio técnico, nomeadamente da enfermeira Ana Lúcia Torgal, que, na época, era presidente da Associação Portuguesa dos Consultores de Lactação Certificados (IBCLC) e consultora da Rede Internacional Pró-alimentação Infantil. “Conheci a Carina através de uma utente e só me encontrei pessoalmente com ela duas vezes”, diz ao PÚBLICO, explicando que entre as duas não havia nenhuma relação anterior à petição. No entanto, quando Carina morreu de forma súbita, em 2021, o pedido da família, para que levasse a iniciativa legislativa de cidadãos adiante, fez todo o sentido.

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Carina Pereira quis incutir aos filhos a ideia de que é preciso “participar” Martin Henrik/Arquivo

“Comprometemo-nos com isso”, declara. A ideia era “não deixar morrer” o projecto que, como escreveu a enfermeira num texto partilhado pela consultora de lactação Cristina Pincho, outro dos nomes que surgem ligados a esta realização, seria “o legado dela aos filhos, à família e à sociedade”, acabando por se tornar uma das missões da Associação das IBCLC, com o apoio ainda das pediatras Graça Gonçalves, que era vice-presidente, e Carlota Veiga de Macedo, além de outros membros da associação e de mães e pais. E as dificuldades sobrepuseram-se a eventuais contratempos.

É que o diploma já tinha sido redigido e a recolha de assinaturas já tinha arrancado, mas a informação estava toda guardada no computador de Carina — e não foi fácil nem lesto encontrar os dados. Só que, explica Ana Lúcia Torgal, “a maioria das assinaturas necessárias já tinha sido recolhida pela Carina”, por isso não podiam desistir.

Depois, a odisseia passou por compilar as assinaturas e carregá-las no site da Assembleia da República, o que se traduziria num trabalho hercúleo, cheio de detalhes burocráticos. Até que, por fim, em Outubro de 2023, Ana Lúcia Torgal e Graça Gonçalves foram chamadas para explicarem aos “diferentes grupos parlamentares da área em apreço o objectivo da iniciativa, o porquê da sua importância, os ganhos em saúde e os contributos para uma sociedade mais amiga das famílias”.

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O grupo de especialistas e várias mães associadas foram ouvir os partidos no dia 25 de Setembro (à esquerda, Cristina Pincho e a Ana Lúcia Torgal) DR

O grupo acabaria por conseguir passar a mensagem e o diploma foi aprovado na generalidade, a 27 de Setembro, apenas com os votos contra dos partidos do Governo, PSD e CDS — todas as restantes sete bancadas manifestaram o seu apoio à iniciativa de cidadãos, que nasceu da vontade de Carina Pereira de não se conformar, que, além da alteração do quadro legal das licenças parentais, deixa ainda outro legado, que expressou em forma de desejo ao PÚBLICO em 2016: incutir a ideia de que é preciso “participar”.

Artigo corrigido: em 2016, a licença de quatro meses era paga a 100%; de cinco meses, a 80%

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