Gerir o território não é discutir futebol

Em dois anos e meio, em 153 concelhos, já foram identificadas quase tantas propriedades (2,3 milhões) como todo o conjunto de matrizes do cadastro anteriormente existente, que demorou... 100 anos!

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Os recentes incêndios de há poucos dias convocam-nos, mais uma vez, para uma reflexão periódica sobre a gestão territorial.

Esta tragédia recorrente tem de originar um debate muito mais profundo do que aquele a que assistimos no espaço mediático. Não se pode abordar o problema dos incêndios com a mesma superficialidade com que se discute futebol, em que alguns comentadores apresentam soluções simplistas e milagrosas, como as centrais de biomassa como a resposta certa para a valorização das terras, regimes criminais mais severos para incendiários que supostamente resolvem problemas profundos, ou investigações sobre interesses ocultos — esta última, curiosa, por nem sequer especificar o tipo de dúvida levantada. Parece uma discussão simplista, onde cada “treinador de bancada” tem a melhor solução.

A acrescer a isso, temos ainda o discurso marcadamente político, no qual é sempre possível apontar melhores iniciativas, dado que as anteriores invariavelmente falharam. Em vez disso, deveríamos focar-nos no impacto das políticas e avaliá-las de forma independente, para determinar o que correu bem ou mal e, a partir daí, melhorar com base nessa abordagem.

Em 2017, tivemos incêndios gravíssimos que revelaram enormes fragilidades na nossa sociedade como um todo, desde o alinhamento governamental até à nossa administração central e local, mas também nos comportamentos da sociedade. Não há soluções com menos intervenientes quando todos assistimos, há meros dias, ao simbolismo de um cidadão a atirar uma beata para o fogo, ao lado dos bombeiros.

Nesse ano, congregaram-se vontades, juntaram-se entidades, municípios, comissões de coordenação regionais, comunidades intermunicipais, privados, e deu-se prioridade política ao mais alto nível. E arregaçaram-se as mangas para o trabalho.

Primeiro na prevenção: todos sabemos que este é um dos maiores problemas. Desde a sensibilização para os comportamentos da população, começando pelos mais jovens, até às aldeias mais remotas ou territórios mais vulneráveis. Temos, na nossa administração, alguns dos maiores especialistas nestes temas, que incansavelmente trabalham em medidas a jusante das ignições.

Avançámos com o cadastro simplificado da propriedade rústica, sem o qual não é possível realmente conhecer e valorizar o território. Em dois anos e meio, após o alargamento aos 153 municípios sem cadastro, já foram identificadas quase tantas propriedades (2,3 milhões) como todo o conjunto de matrizes do cadastro anteriormente existente, que demorou... 100 anos! Contudo, é também evidente que alguns municípios perceberam melhor o potencial deste projeto do que outros. Basta consultar os dados públicos de cada município e comparar quais estão mais avançados em obter o maior instrumento possível de gestão e planeamento territorial.

Também na atuação houve avanços significativos. Desde os meios de combate, às comunicações e à penalização. Temos na lei instrumentos que, por exemplo, permitem a utilização de pulseiras eletrónicas para condenados com pena suspensa, obrigando-os a permanecer nas suas habitações em períodos críticos. É uma opção do juiz, mas que precisa de ser efetivamente utilizada.

Todas estas medidas devem ser vistas como um trabalho em evolução. Por exemplo, é necessário executar as medidas mais relevantes identificadas pelo grupo de trabalho na área da propriedade rústica, que de uma vez por todas evitem o abandono das terras, nomeadamente por conflitos nas heranças. Ou operacionalizar finalmente a estratégia dos territórios inteligentes, dotando a nossa administração de melhores meios e instrumentos de gestão.

Temos alterações climáticas imprevisíveis, com efeitos brutais, que afetam áreas que, até agora, pareciam ser pouco vulneráveis ou marcadamente urbanas. Aliás, uma das lições que devemos tirar deste facto é que o cadastro deve mesmo abranger todo o território.

Mas precisamos urgentemente de começar a medir o impacto e cruzar diferentes dados e medidas de forma independente. Há vários trabalhos em curso que urge reforçar e dar visibilidade dos resultados.

É fundamental continuar programas transversais que só funcionam com o patrocínio político ao mais alto nível. Não basta termos a Agricultura a prometer "um plano para as florestas", se depois tantas medidas são implementadas na Justiça, no Ambiente, na Administração Interna ou na Coesão.

No Bupi (Balcão Único do Prédio), por exemplo, é necessário acelerar. O momento é agora: o financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência durará apenas mais três semestres. Quem conhece a terra acabará por desaparecer e não passará o conhecimento.

Precisamos, ainda, de retirar lições para que, de uma vez por todas, caminhemos rumo a uma administração pública mais unida e coordenada. É essencial que ela não funcione por silos, onde cada área tenha o seu próprio processo, sistema e equipa. Somos poucos para os problemas que enfrentamos; precisamos de respostas alinhadas. A nossa administração tem de ser mais resiliente.

Chegou a chuva, passará mais um ano. Começou a época desportiva. O Benfica ganhará, ou não, mais um campeonato.

Ficará para o espaço mediático do verão do próximo ano uma nova discussão sobre como fazer diferente.

Temos de ser muito mais do que apenas isto.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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