Avenida da Liberdade em Lisboa de todas as cores na primeira Marxa Cabral

A manifestação realizou-se no Dia Internacional da Paz e assinala o centenário de Amílcar Cabral.

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A marxa assinalou o centenário de Amílcar Cabral Enric Vives-Rubio
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Centenas de pessoas, de várias raças, género e idades, desceram este sábado a Avenida da Liberdade, em Lisboa, na primeira Marxa Cabral em Portugal organizada pelo Movimento Negro.

“Amílcar Cabral, unidade e luta. Contra o racismo e a xenofobia”, foram as palavras com que a Marxa (marcha, em crioulo) Cabral arrancou da Praça do Marquês de Pombal animada por batucadeiras, fortes sons de tambores, muitos gritos e vivas a Cabral, o líder africano e anticolonialista que faria este ano 100 anos de idade.

Com uma hora de atraso, os manifestantes avançaram devagar às 16 horas apoiados por um mar de bandeiras onde o rosto de Amílcar Cabral era assinalado. As frases que o marcaram são visíveis, bem como bandeiras dos países que ajudou a libertar do colonialismo: Cabo Verde e Guiné-Bissau.

Esta marcha realiza-se no Dia Internacional da Paz e percorreu a Avenida da Liberdade, culminando no Rossio (Largo de São Domingos), onde foi lida uma declaração segundo a qual Setembro será, a partir de hoje, o mês das Marxas Cabral em Portugal.

A avenida onde Abril é celebrado em Lisboa encheu-se de cores, penteados africanos, súmbias e muitas bandeiras de vários países e causas para celebrar o líder Amílcar Cabral e reclamar a unidade que este defendeu.

“Cabral presente, hoje e sempre” e “25 de Abril também é Cabral” foram algumas das muitas palavras de ordem que encheram de som a Avenida da Liberdade, em Lisboa, durante a primeira Marxa Cabral em Portugal, organizada pelo Movimento Negro, e que juntou milhares de pessoas.

Com um súmbia, o chapéu que era a imagem de marca de Amílcar Cabral, Ronaldo Mendes, um jovem guineense a estudar em Portugal, disse à agência Lusa que decidiu descer a avenida para “celebrar Cabral”.

“Estamos no ano do centenário de Amílcar Cabral, com várias actividades, e esta é uma delas, que o traz presente”.

Para Ronaldo, a principal mensagem do “pai” da independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau é que é preciso continuar a luta, “mais uma vez, por um mundo melhor”.

Vânia Andrade, do movimento negro em Portugal e uma das organizadoras do evento, sublinhou a importância da figura de Cabral, “um líder do povo africano que foi um homem que esteve muito presente no 25 de Abril”.

E lamentou que, apesar disso, Cabral não tenha, nos últimos 50 anos, estado mais presente nas celebrações de Abril, o que o evento pretende mudar.

“Para nós é importante trazermos de novo o nome de Amílcar Cabral, que falta nos nossos livros, e um pouco no nosso dia a dia, mas não quer dizer que não esteja presente”, disse, afirmando: “É importante recordar a Portugal que Amílcar Cabral não morreu, está vivo”.

Para Yussef, das Conferências Africanas e organizador desta Marxa, Cabral é uma das entidades que remete para algo comum, que é uma história comum, uma história de resistência, de luta política.

“A unidade política importa. Amílcar Cabral consegue concentrar todas as resistências que existiam: antifascista, anticolonialista”, disse.

Paula Almeida, que participou na organização da marxa, embora não pertença a nenhum movimento, assume-se cabralista, ou seja, “alguém que defende os valores de Cabral”, que passam por “ver o mundo de uma forma muito humanitária”.

“Mutas vezes estamos com ideologias e esquecemos o homem que Amílcar Cabral é: um homem que se preocupa com o homem, estamos a falar de valores da humanidade, da igualdade, da não colonização. Quem é bom e quer o bem não coloniza ninguém, não é racista, não é fascista e não é xenófobo”, afirmou.

Flávio Almada, do Movimento Vida Justa, fez questão de estar presente no evento, até porque reconhece em alguns valores de Cabral o que reivindica para a sociedade actual: “Direito ao salário, habitação, contra a violência policial, acesso aos transportes públicos, acesso à cultura e à cidade”.

“Extraímos muitas lições ensinadas por Amílcar Cabral. Para nós é uma data que deve ser celebrada, reconhecida, não só uma celebração, mas um dia de luta por melhores condições de vida e dignidade”, afirmou.

E adiantou: “Cumprir Cabral é cumprir Abril. A luta de libertação no continente africano e a luta antifascista aqui [em Portugal] estiveram sempre lado a lado e Amílcar Cabral sempre enfatizou que estavam a lutar contra o mesmo tipo de opressor”.

No final da marcha será lida a “Declaração Panafricanista de Lisboa - Cabral Sempre!” que elege Setembro como o mês das marchas Cabral, compostas por pessoas que “agem e pensam pela própria cabeça”.

No documento, as três dezenas de organizações do movimento negro em Portugal subscritoras explicam que a realização das marchas Cabral em Setembro, mês em que se assinala o aniversário do nascimento de Amílcar Cabral, que este ano completaria 100 anos de vida, deverão ser um grito “contra as guerras, a miséria, a injustiça e as fomes”, bem como “contra o extrativismo e a exploração que empobrecem e matam os povos do sul global e todas as formas de vida, sobretudo em África”, entre outras injustiças a combater.

Mortágua: lei aumenta “imigração clandestina”

Participando na Marxa, a coordenadora do Bloco de Esquerda acusou o Governo de “brutal irresponsabilidade” ao acabar com “o único mecanismo que existia para regularizar imigrantes que já estavam em Portugal” e considerou que a actual lei aumenta “a imigração clandestina”.

“O que o Governo fez na lei da imigração foi de uma brutal irresponsabilidade ao acabar com o único mecanismo que existia para regularizar imigrantes que já estavam em Portugal. O que o Governo fez foi aumentar com a imigração clandestina em Portugal e isso vai ter consequências, porque a imigração clandestina quer dizer imigrantes que trabalham com menos salário, com menos direitos, menos capazes de se incluírem na sociedade. Imigração clandestina quer dizer que não vai haver reagrupamento familiar”, disse Mariana Mortágua.

Em Junho, o Governo alterou a lei de estrangeiros e, entre outras medidas, extinguiu a figura das manifestações de interesse, um recurso jurídico que permitia a legalização de imigrantes em Portugal que tivessem chegado ao país com visto de turista.

Para Mariana Mortágua, “esta forma como o Governo está a tratar a migração vai piorar o problema”. “Em vez de enfrentar o problema do racismo, da xenofobia, em vez de dar condições e do país olhar para a imigração de que precisa com outro olhar, como incluir as pessoas, está a fazer o contrário, que é atirá-las para a clandestinidade e acabar assim a dar azo a outros fenómenos que são alimentados pela extrema-direita”, precisou.

Sobre a importância desta manifestação, a coordenadora do BE afirmou que tem “uma dupla importância”, não só para “relembrar e celebrar Amílcar Cabral, que é uma figura central da democracia portuguesa”, como também para “fazer uma leitura dos dias de hoje”.

“Temos vindo a assistir ao crescimento de movimentos racistas e xenófobos na sociedade portuguesa, que estão a ser impulsionados por grupos de extrema-direita, grupos neonazis e também por parte de partidos de extrema-direita, como o Chega. Por isso, é preciso responder”, sublinhou.

A coordenadora do BE considerou também que “estas manifestações têm uma importância histórica”, existindo “muito por fazer em Portugal para combater o racismo”.

“Os fenómenos de violência que temos vindo a assistir nos últimos tempos em Portugal, nunca vistos em Portugal, de ataques a imigrantes, ataques em escolas, têm a ver com este ressurgimento do ódio e destas demonstrações de ódio, que queremos combater”, concluiu.