Pélicot: os violadores não são monstros
A monstrualização dos perpetradores é uma estratégia de conforto, que nos permite ilusoriamente distanciar-nos do horror. O imaginário do monstro tem um subtexto: ele não é um de nós.
Por esta altura, já todas ouvimos falar do terror das violações em Mazan. Durante mais de dez anos, Dominique sedou com comprimidos Gisèle Pélicot, com quem esteve casado cinco décadas, publicitando-a num fórum online como uma coisa consumível, para que outros homens a violassem enquanto inconsciente. (O site coco.gg esteve ligado a outros casos de violência e só em junho foi encerrado).
Dominique filmou as violações, tendo estes registos sido encontrados pela polícia no decurso de uma outra investigação anos antes (Dominique foi detido por ter filmado mulheres por debaixo das saias sem o seu consentimento, uma forma de violência comummente designada upskirting). Entre os homens que violaram Gisèle inconsciente constam um bombeiro, um polícia, um jornalista, enfermeiros e um guarda prisional. Dezenas de homens comuns, com profissões e idades díspares. Muitos homens participaram; outros tantos terão sabido destes crimes, sem que ninguém denunciasse.
Em tribunal, Gisèle falou das violações e a sua expressão foi corrigida: foi-lhe dito que, por respeito à presunção de inocência, deveria referir-se a “cenas de sexo” e não a violação. Este disciplinar do discurso de Gisèle é uma absoluta perversão da presunção de inocência, tantas vezes usada para silenciar as mulheres, as suas histórias e experiências, dentro e fora dos tribunais.
Correm, como sempre acontece nos casos que suscitam horror coletivo, comentários e títulos que descrevem Dominique Pélicot como “monstro”. Apelo a que não o façamos. A monstrualização dos perpetradores é uma estratégia de conforto, que nos permite ilusoriamente distanciar-nos do horror. O imaginário do monstro tem um subtexto: ele não é um de nós.
Mas é isto – também – um violador. O nosso colega, o nosso amigo, o nosso marido. O vizinho simpático que nos arranja a bicicleta e que cumprimentamos na padaria. O dito bom pai de família. O avô carinhoso. Homens feitos da mesma matéria, criados nas mesmas famílias e escolas, alguém que reconhecemos como igual.
Este caso parece distante, inimaginável e indizível – e, de muitas formas, é-o de facto. Mas Gisèle não é um caso isolado, nem os seus violadores o são. Marta Asensio, vítima-sobrevivente e ativista espanhola, tem contado publicamente como foi repetidamente violada quando inconsciente, em casa, por alguém que amava e em quem confiava. O seu testemunho tem mostrado, mais uma vez, a insuficiência do slogan “não é não”: como acontece nos casos descritos de “submissão química”, muitas vítimas de violação não têm condições para dizer não. Marta bateu-se pela inclusão da violação na recentemente aprovada Diretiva para combater a violência contra as mulheres – diretiva essa que falhou ao não incluir a violação ou o assédio sexual, entre outras omissões. Estamos ainda muito longe de cumprir a exigência da participação ativa, recíproca e voluntária de todas as pessoas envolvidas, em qualquer ato sexual (considero que chamar-lhe consentimento é equívoco e redutor).
Aos 71 anos, Gisèle Pélicot abdicou do anonimato porque acredita que a vergonha tem de mudar de lado. Gisèle escolheu corajosamente a visibilidade em nome de todas as outras vítimas. É algo que todas temos de agradecer. Mas essa escolha não é um livre passe para a reprodução incessante e tantas vezes voyeurista da sua imagem. Poucos viram a imagem de Dominique Pélicot. Muitos dos violadores de Gisèle continuam no anonimato.
Obrigada, Gisèle Pélicot. Obrigada, Marta Asensio. A vergonha não é nossa e tem mesmo de mudar de lado.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico