Augusto M. Seabra e o cinema português

É urgente a reunião dos seus textos sobre cinema. Muitos deles serão publicados pela primeira vez; outros serão descobertos para além da espuma dos dias e dos arquivos físicos dos jornais.

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Augusto M. Seabra (1955-2024) Pedro Martinho
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Conheci o Augusto M. Seabra (1955-2024), precisamente, lendo os seus textos. Eram, para mim, uma expansão daquilo que se chamava crítica de cinema. Acutilantes, longos, dando espaço para o pensamento se complexificar. Não só os extensos artigos que publicava regularmente no PÚBLICO, mas também a ampla produção teórica que deixou sobre o cinema português. Curiosamente, muitos dos seus textos eram (e ainda são) apenas acessíveis em outras línguas, sobretudo francês e italiano, também ligadas às programações que fizera nesses países. Aprendi a olhar o cinema português também através do seu ponto de vista, que me parece o menos “familiar” dos autores canónicos da petite histoire do nosso cinema.

Esses textos marcavam, de uma forma acutilante, uma nova forma de ver, menos ligada a uma história produtiva e mais focada naquilo que os filmes pareciam dar a ver, como eco dos imaginários de um país. Em La Scène de L’Histoire, o Augusto propunha uma divisão do cinema português por gerações, imitando a nomenclatura das vagas do cinema chinês. Foi com ele que aprendi a ler os filmes como sintomas: a sua análise do Mudar de Vida, de Paulo Rocha, e de uma certa frase dita por Maria Barroso (“Lembraste-me longe, esqueceste-me perto”), evidenciava, no interior do filme, a profunda tensão que os cineastas portugueses tinham com Portugal. Houve poucos como ele a discutir e a evidenciar como esta relação era “dolorosa”. Foi também dos primeiros a ver o lado obscuro da suposta “idade de ouro” do cinema português, rebatizando as “comédias à portuguesa” pela mais certeira categoria de “comédias de Lisboa”.

Se, por um lado, era cáustico para com certos períodos do cinema português - “a quase totalidade da produção desse período [o cinema do PREC] foi politicamente demagógica e esteticamente medíocre” –, ele soube ser o catalisador das novas gerações, especialmente aquela que surge no final da década de 1980. Num texto nunca publicado, e que gentilmente me cedeu, intitulado Ritos de Passagem, o Augusto fala da “terceira geração”, dando conta da teia de afetos e ligações entre realizadores, técnicos e atores; mas também da forma como estes filmes procuravam uma relação instável com a tradição do cinema português e com o futuro político e social de Portugal. Vinha aí o tempo da Europa.

Soube da sua morte no final de uma sessão de visionamento de Grand Tour, de Miguel Gomes. É uma estranha coincidência, pela forma como, para mim, os dois nomes eram tão indissociáveis, desde que o Augusto cunhou o termo “Gerações Curtas”, e com o qual trabalhei, na minha investigação, durante vários anos. Para mim, ele foi sempre um crítico cultural que arriscava, no correr do tempo, analisar as tendências do cinema que via – ele que era tão, tão atento ao cinema seu contemporâneo, que o buscava com uma evidente insaciedade – e propor conceitos, a teoria, para melhor compreender os fenómenos culturais. A Geração Curtas – expressão que ele inventou num artigo do PÚBLICO – ficou também como momento determinante de alteração do paradigma. Ele estava lá, na periferia da periferia, em Vila do Conde, para auscultar o novo. Foi esse fascínio que também me entusiasmou na leitura dos seus textos.

Finalmente, entrei na sua própria história ao trabalhar com ele, sucessivamente, em dois projetos editoriais do Curtas Vila do Conde. Nesses livros, aprendi muito com os seus intermináveis telefonemas, ora para dissertar sobre algum aspeto concreto do nosso projeto, ora para falar de filmes e dos seus autores de eleição. Num dos textos que acabou por escrever, não deixou de ser crítico do próprio festival, já que, na sua opinião, uma decisão de programação tinha sido errada. Creio ser urgente a reunião dos seus textos sobre cinema. Muitos deles serão publicados pela primeira vez; outros serão descobertos para além da espuma dos dias e dos arquivos físicos dos jornais.

Fiquei muito feliz quando o Augusto decidiu doar parte do seu espólio – aquele mais diretamente relacionado com o cinema, e sobretudo com raras edições da Cinemateca e da Gulbenkian – à Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa. No seu lugar independente, já no final da sua vida, ele continuava atento.

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