O último salto de Filipa é para fora, mas com nota 10,00

Em Paris, a ginasta fez história por si e pelo país. No topo de carreira, decidiu sair, porque saber sair também é um talento. Vai saltar para fora da competição, mas aterra de pé. E com nota 10,00.

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Filipa Martins em acção nos Jogos Olímpicos de Paris JOS?? SENA GOUL??O / LUSA
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Pela primeira vez na carreira de ginasta, Filipa Martins quis fazer, propositadamente, um salto para fora dos aparelhos e dos praticáveis. Neste domingo, decidiu, por vontade própria, saltar para fora – para fora da ginástica, porque vai deixar de ser atleta de alta competição.

Mas este é, provavelmente, o salto para fora mais feliz que já fez. No salto para a reforma, a portuense de 28 anos aterra de pé, depois de se tornar, por mérito próprio, a melhor ginasta da história de Portugal. Sai em paz.

Ao contrário de Nadia Comaneci, que um dia teve aquela famosa nota 10,00 – a primeira de sempre – sem que o mundo e o placard electrónico de Montréal estivessem preparados para quatro algarismos, Filipa Martins não apanha o mundo de surpresa com o seu 10,00.

É de há dez anos que surge o primeiro registo numa competição oficial, em Cottbus, e foi dez anos depois disso que se tornou a primeira portuguesa numa final olímpica de all-around. E foi depois dessa década de saltos, quedas, sorrisos, lágrimas, lesões e conquistas que decidiu parar. Porque saber parar também é um talento.

Esticar os 28 anos seria ousadia

O PÚBLICO esteve em Paris a ver os últimos saltos da carreira de Filipa Martins. Na altura, escrevemos que “aos 28 anos, estes são os terceiros Jogos de Filipa Martins e, provavelmente, os últimos – a modalidade não costuma ser amigável com o corpo e a mente de atletas forçadas a longevidade curta”.

Esta frase não se tratou de especial talento de um jornalista-Zandinga, mas de mera análise ao que é a ginástica. Falar de reforma aos 28 anos é um conceito estranho para o cidadão comum e até para um atleta de alta competição, mas a ginástica é um submundo diferente do desporto em geral.

Durante décadas, uma ginasta de 28 anos era uma veterana que estava a romper com a normalidade. É verdade que, em 2024, isso já não é bem assim – Simone Biles e Filipa Martins são exemplos disso –, mas esticar além dos 27/28 anos já é audácia e ousadia a mais.

Para entrar num novo ciclo olímpico, Filipa Martins teria de acreditar ter condições para, aos 32 anos, com 28 de ginástica nas pernas, se manter firme no duelo com as jovens de 20 anos que surgirão em Los Angeles. E é sensato pensar que não seria provável consegui-lo.

Assim sendo, sai por cima. Um mês depois de estar na final do all-around, em Paris, a ginasta portuense sai em paz e vai dar descanso aos tornozelos, que somam cinco cirurgias em 13 anos.

Fechar com um duplo inédito

A saída de Filipa tem nota 10,00, porque dificilmente poderia fazê-lo num momento melhor. Sai com 28 anos, idade em que a ginástica já nem costuma permitir grandes aventuras. Sai depois de cinco cirurgias aos tornozelos em pouco mais de dez anos, algo que também não sugere especial capacidade de enfrentar mais lesões com a brutalidade da ginástica.

Sai antes do início de um ciclo olímpico, evitando a desilusão de o iniciar e ter de parar a meio, se visse que já não estava capaz. Sai depois daquelas duas tardes de sorrisos e lágrimas em Paris. E sai depois de ter oferecido tudo nessa última aventura, com um salto tão arriscado que estava guardado há anos. Como sair melhor do que isto?

Em Paris, perante as melhores do mundo, Filipa prestou-se ao que nunca se prestava. Desde 2014 que tinha, no seu caderninho de rotinas, um segredo bem guardado. E pedimos à ginasta que nos contasse esse segredo. “O nome técnico é Yurchenko com dupla pirueta. É uma rodada com flick por cima da mesa e mortal com duas piruetas”, detalhou.

“Estou a tentar aquele salto desde 2014, mas é tão arriscado que temos medo de o meter em competição. Aos 28 anos, pô-lo em competição... não temos palavras. Estávamos com medo. É difícil e arriscado”, apontou ainda, em Paris, no final da prova, sempre com a conjugação na primeira pessoa do plural – raramente a ginasta fala apenas em nome próprio, apesar de ser Filipa, só Filipa, quem coloca o seu corpo a desafiar as leis da física.

Aquele Yurchenko duplo era o salto que poderia acabar com uma carreira. Mas não acabou – pelo menos, não de forma forçada. Acabou por vontade da atleta, que pôde encerrar o percurso na ginástica com uma inédita final olímpica – para ela e para o país – e com um salto histórico, nunca feito por uma portuguesa.

Sem medalhas no topo

Há um motivo para que estejamos mais a falar daquele dia da ida à final do que da final propriamente dita. É que Filipa Martins sabia que o objectivo adequado ao seu nível actual seria esse. Depois, na final, tudo seria bónus, porque havia, pelo menos, duas mãos-cheias de atletas mais capacitadas.

O desempenho da portuguesa na final, com o 20.º lugar, até nem foi ao seu melhor nível – a melhor Filipa foi a da qualificação. É também por isso que a própria Filipa, na hora da despedida num vídeo nas redes sociais, acaba a dizer “termino com os terceiros Jogos Olímpicos, finalmente com a grande dupla nos saltos a fazer história uma última vez, sendo a primeira finalista olímpica”.

Mesmo para ela, o ponto alto foi aquela qualificação na Arena Bercy, com sorrisos a seguir ao salto, à trave e ao solo – só após as assimétricas, as suas assimétricas, fez um esgar de assim-assim, sabendo que poderia ter feito melhor no seu aparelho preferido.

E sejamos justos: a carreira de Filipa Martins não foi, no plano internacional, uma carreira de primeiro nível. Para muitos, esta premissa pode roçar a heresia jornalística na hora do “adeus” desportivo à ginasta, mas os factos são o que são.

Sem medalhas em Europeus, Mundiais ou Jogos Olímpicos, a portuguesa apareceu de forma consistente num segundo patamar: o patamar de quem lá estava ano sim, ano sim – sem o aplauso do pódio ou dos ouros, mas com o aplauso de vários lugares de destaque, bem como medalhas em Taças do Mundo.

E isto que a portuense fez já não foi coisa pouca, até porque não é só de Europeus, Mundiais e Jogos Olímpicos que se faz a carreira de uma ginasta.

O “Martins”

Filipa Martins sai com o seu apelido inscrito no código de pontuação da ginástica artística.

Respire fundo, porque vem aí algo intenso. Cá vai: volta livre para Tkachev [passar de costas por cima do banzo em posição encarpada com as pernas afastadas], rotação de 180º, agarrando o banzo superior das paralelas, seguido de passagem com meia-volta para o banzo inferior.

Parece difícil? É difícil. Simplificando, chamemos-lhe apenas “Martins”, porque é esse o nome desta aventura mortal em forma de ginástica.

A ginasta portuguesa garantiu, em 2021, que qualquer outra que viesse a tentar este movimento nas paralelas assimétricas estaria obrigada a dizer “vou tentar um Martins”. Ou um “mártinz”, como se diz pelo mundo. E também isto não é coisa pouca.

Durante nove meses a treinar o “Martins”, Filipa caiu mil vezes e levantou-se mil e uma, como a própria definiu. E, na altura em que inscreveu o “Martins”, escrevemos no PÚBLICO que “um dia, quando quiser falar da carreira que teve, Filipa terá autoridade para dizer, sem pudor, que o código de pontos da ginástica artística previa uma pontuação específica para quem repetisse o que ela criou”. Esse dia chegou e Filipa já está a falar da carreira que teve. E do futuro também.

A acabar o mestrado em treino desportivo, já revelou querer tornar-se treinadora. Quando Filipa Martins disse, em Paris, que o Yurchenko duplo ia "abrir horizontes para não fazermos só o que estamos habituados”, se calhar já estava a falar do futuro e ninguém deu conta disso.

O futuro da ginástica portuguesa já não será dela em nome próprio, mas quem melhor do que a melhor de sempre para ensinar as novas meninas da ginástica? Saiu-lhes a sorte grande.

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