Olhem para nós, formámos uma banda

Não há tantas bandas como no passado: promoveu-se o solipsismo e perdeu-se a prova da criação conjunta. O que se ganhou em dinamismo criativo perdeu-se em experiência associativa.

Ouça este artigo
00:00
03:36

A aparente reconciliação dos irmãos Gallagher possibilitou uma nova digressão dos Oasis, gerando mais uma onda de saudosismo, típica da cultura popular de hoje. Só que, como explicava na sexta-feira, no PÚBLICO, o Francisco Mendes da Silva, talvez não seja só isso que está a suceder. O entusiasmo que a digressão dos Oasis está a provocar é, também, uma demonstração da sede com que as pessoas estão de experiências comunitárias de júbilo. Experiências que desde a década de 60 encontraram nas bandas de rock’n’roll veículos privilegiados. Só que, hoje, praticamente não existem bandas novas que sejam fenómenos de massas. O que tem consequências para as nossas experiências comunitárias de júbilo, para recuperar a preocupação acertada do Francisco Mendes da Silva.

Uma pesquisa rápida pelas tabelas de músicas da última semana dá-nos um retrato contundente. No top 40 do Reino Unido, só há artistas em nome individual e dois grupos: os NSYNC, uma boys band que suspeito terá sido formada por um agente na década de 90, e os omnipresentes Coldplay, num modesto 33.º lugar. Quando olhamos para o top 100 da Billboard, o cenário é mais radical: não há bandas. Ainda neste fim-de-semana, no festival Meo Kalorama, os cabeças de cartaz eram artistas em nome individual ou grupos com décadas – aliás, emanações de movimentos mais vastos (os Massive Attack, que nasceram do coletivo artístico Wild Bunch, logo no início dos 90, e os LCD Soundsystem, parte da cena que gravitou em torno da DFA Records, no início do milénio). É mesmo muito difícil encontrar bandas novas que movimentem massas. Resta, por isso, o apelo nostálgico das bandas do passado, como os Oasis.

Há uma explicação determinante para o recuo das bandas e a sua substituição por artistas em nome individual. Uma explicação que tem consequências sociais bem vastas.

Agora, como no passado, a tecnologia é crucial para estimular a criação artística e para a democratização da cultura. No passado, foi, primeiro, o desenvolvimento da ferrovia que permitiu a circulação de espetáculos, viabilizando produções mais custosas e levando a música a novos públicos, enquanto a regulação dos direitos de autor, combinada com a venda em massa de música escrita, estimulou materialmente a criatividade. Devemos aos avanços do século XIX o cosmopolitismo cultural que formou a Europa (a este propósito, vale a pena ler o extraordinário The Europeans, de Orlando Figes).

Nos nossos dias, são também as transformações tecnológicas que explicam as mudanças na criação artística, em particular na música. Hoje passou a ser acessível para um adolescente fazer música com um computador, fechado no seu quarto. Formar um grupo, pelo contrário, sempre foi exigente: implica investimento relacional, instrumentos e um espaço para ensaios. Não há tantas bandas como no passado porque há incentivos para a criação individual, mas a transformação tem consequências: promoveu-se o solipsismo e perdeu-se a prova da criação conjunta. O que se ganhou em dinamismo criativo perdeu-se em experiência associativa.

É por isso que o regresso dos Oasis pode servir para recuperar o prazer das experiências de júbilo coletivo que sentimos ao assistir a um espetáculo, em conjunto com outras pessoas. Mas espero que tenha também um outro efeito: estimular entre os miúdos nascidos já após o fim da banda dos irmãos Gallagher a vontade de se fecharem numa garagem com quatro amigos, de guitarras na mão, e repetirem o grito dos Art Brut há 20 anos: “Olhem para nós, formámos uma banda.” As nossas sociedades precisam desse exercício colaborativo como resposta ao individualismo militante. Que o rock’n’roll sirva de novo de exemplo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 2 comentários