Medicina dentária: a medalha que envergonha

Por estranho que pareça, temos excesso de médicos dentistas e temos falta de médicos dentistas.

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A notícia chega do mundo das competições estatísticas: Portugal ganhou a medalha de prata da União Europeia (UE) na modalidade “Médicos dentistas formados em 2022”. A organização do campeonato é da responsabilidade do Eurostat, o gabinete de estatística da UE. Só a Roménia é que conseguiu fazer melhor do que nós, ao garantir o primeiro lugar.

A segunda posição desta competição seria fortemente aplaudida pelos praticantes e entusiastas da modalidade, se Portugal tivesse falta de médicos dentistas. Ou se, em chegando à meta, estes atletas tivessem a possibilidade de contribuir para uma melhoria da situação no país. Nem uma coisa, nem outra. Por estranho que pareça, temos excesso de médicos dentistas e temos falta de médicos dentistas.

Vamos por partes. Os 9,05 profissionais por 100 mil habitantes que concluíram o curso há dois anos vieram juntar-se aos muitos profissionais que, na última década, as universidades têm vindo a formar. O rácio é de um médico dentista por 814 habitantes, mais do dobro dos 1800 recomendados pela Organização Mundial de Saúde.

Este número excessivo deve-se a uma contínua falta de regulação governamental. As universidades foram aumentando os numerus clausus, sem haver uma adequação às necessidades reais e sem acautelar a qualidade de ensino. Uma realidade que parece ter merecido pela primeira vez a atenção da A3ES - Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior no final de 2023, e que resultou numa redução do número de admissões em algumas instituições de ensino superior.

Quem hoje começa a fazer um curso de Medicina Dentária tem consciência de que, com um elevado grau de probabilidade, terá de sair do país para poder exercer a profissão. Por mais que estude e invista no seu percurso, não há como escapar à lei da oferta e da procura.

Formamos médicos dentistas para exportação, numa clara contradição com o desígnio governamental de fixação dentro de portas de recursos humanos altamente qualificados. Ninguém quer acabar o curso e ficar no desemprego. Ninguém quer regressar a Portugal para ficar no desemprego ou enfrentar a precariedade.

Temos excesso de médicos dentistas. Mas, paradoxalmente, também temos falta deles. Esta incongruência é um facto, conhecido e sentido por todos, mas também se revela nos números de outra competição, desta feita da responsabilidade da OCDE. Dos países que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, Portugal é o terceiro onde a população tem mais dificuldade em aceder a cuidados de saúde oral. Uma lamentável medalha de bronze que carregamos ao peito.

Após meio século de democracia, continuamos sem políticas verdadeiras de saúde oral, com uma consequência óbvia: sem médicos dentistas, não existem efetivos cuidados de saúde oral para parte substancial da população. Nem todas as pessoas podem evitar uma dor de dentes. Nem todas as pessoas podem tratar de uma dor de dentes. Sem saúde oral, não há saúde. Não há inclusão social, não há produtividade.

Não há dignidade.

A Ordem dos Médicos Dentistas tem vindo a defender a urgência da aposta na saúde oral, num modelo que se afaste da ideologia política e se foque somente nas pessoas. Um modelo híbrido, de complementaridade, por um lado convencionar tratamentos dentários prestados pelas mais de 6 mil clínicas dispersas pelo país, e por outro, a devida integração dos escassos e desprotegidos médicos dentistas que continuam a querer integrar uma carreira de medicina dentária no SNS (não chegam a 150), porque só deste modo será possível avançar com a prevenção e dar resposta às muitas necessidades que o país tem a este nível. A promessa oficial, ainda do governo passado, foi feita em dezembro de 2023, altura em que entrou em vigor o relatório “SNS: Saúde Oral 2.0”, mas até à data nada aconteceu. Dizem-nos que o assunto não está esquecido, mas, neste contrarrelógio, a meta ainda não está à vista.

Com a medalha de prata do número de médicos dentistas garantida, é preciso pensar em mudar de modalidade, para uma que nos seja efetivamente útil. Precisamos do ouro, do ouro a sério: este campeonato só estará ganho no dia em que não houver excesso de médicos dentistas, nem falta deles onde a corrida se faz todos os dias.

Para já, vamos esperando e lamentando por continuarmos a ter as medalhas dos últimos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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