Puigdemont é recebido por uma multidão em Barcelona e depois desaparece. Polícia catalã está à sua procura

Mossos d’Esquadra reactivam “Operação Jaula”. Sete anos depois, líder independentista voltou para perturbar a investidura do candidato socialista e recuperar o protagonismo.

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Puigdemont no curto discurso que fez, no exterior do parlamento, no centro de Barcelona ALBERTO ESTEVEZ / EPA

"Ainda aqui estamos porque não temos direito a renunciar." Foi com estas palavras que Carles Puigdemont voltou a falar aos apoiantes em Barcelona, quase sete anos depois de ter saído da Catalunha a caminho de Bruxelas para evitar ser acusado e condenado por ter organizado um referendo ilegal e declarado a independência. Uns 15 minutos depois de reaparecer, o ex-presidente catalão voltava a desaparecer, entre a multidão. Um membro da polícia catalã, os Mossos d'Esquadra, foi detido, suspeito de ter permitido a fuga.

Evitando a detenção, o regresso de Puigdemont não parecia ter impedido a realização do debate de investidura do candidato socialista Salvador Illa, que soma apoios para liderar a da Generalitat (o governo catalão). A sessão começou à hora marcada, com Illa a discursar, seguindo-se a réplica dos primeiros grupos parlamentar e o esperado intervalo para almoço. Mas o debate acabou por ser suspenso logo depois de recomeçar, a pedido do Juntos pela Catalunha, o partido de Puigdemont, e com a oposição do Partido Socialista da Catalunha (PSC), Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e Comuns (conjunto de vários movimentos de esquerda).

O pedido, inicialmente recusado, foi repetido pelo porta-voz parlamentar do Juntos, Albert Batet, invocando uma suposta ordem de detenção contra o secretário-geral do partido, Jordi Turull, que terá facilitado a fuga de Puigdemont. "Um acontecimento sem precedentes que, sem dúvida, não corresponde à normalidade democrática", justificou.​

Enquanto a Mesa do Parlamento se reunia para debater a solicitação de adiamento, os Mossos esclareciam que não há qualquer mandado de captura contra Turull, confirmando que este foi convocado a depor no inquérito aberto às circunstâncias do desaparecimento do ex-president. Pouco depois, recomeçava o plenário.

"O direito à autodeterminação pertence ao povo, é um direito colectivo. Não nos deixemos confundir, a realização de um referendo não é nem nunca será um crime. Há sete anos, 2,3 milhões de pessoas votaram", afirmara Puigdemont, perante cerca de 3500 pessoas (estimativa da Guarda Civil) e gritos de "presidente, presidente!". À sua espera estavam também o presidente do parlamento, Josep Rull, e os deputados do Juntos na assembleia catalã e no Congresso, assim como outros dirigentes do seu partido.

"Não sei quando nos voltaremos a ver. Aconteça o que acontecer, quando nos voltarmos a encontrar, que terminemos com o grito com que termino o meu discurso: 'Visca Catalunya lliure!'", declarou, antes de começar a caminhar em direcção ao parlamento catalão, rodeado de apoiantes e de membros do Juntos. Lá dentro, esperava-se que o ex-president da Generalitat (o governo catalão) participasse, enquanto deputado, no debate de investidura do candidato socialista Salvador Illa. Foi isso que anunciou na quarta-feira, quando disse que já tinha iniciado "a viagem de regresso do exílio".

Mas quando Rull deu início à sessão, pelas 10h (9h, em Portugal continental), Puigdemont não estava no hemiciclo. O presidente do parlamento informou que dois deputados que não podiam estar presentes tinham delegado o seu voto: um deles é Lluís Puig, que em 2017 era conselheiro (equivalente a ministro) da Cultura do governo de Puigdemont e que com ele tem estado em Bruxelas. Cinco minutos depois, deu a palavra a Illa, que iniciou o discurso de apresentação do seu programa.

Entre o Passeio Lluís Companys, para onde foi marcada a “cerimónia institucional de boas-vindas ao 130º presidente da Generalitat da Catalunha”, e o Parque da Ciutadella, onde se ergue o Palácio do Parlamento, havia barreiras montadas pela polícia catalã, que tem ordens para deter Puigdemont e que se esperava que o impedisse de alcançar o parlamento. Ninguém queria ver os Mossos d'Esquadra a entrar no hemiciclo.

Já depois do fim da sua curta intervenção, os jornalistas no Passeio Lluís Companys deram conta da presença de uns 50 apoiantes do partido da direita radical Vox. “Eu sou espanhol, espanhol” e “Vamos apanhá-los”, gritaram, concentrados perto do portão de acesso ao parque e ao parlamento.

Quanto a Puigdemont, deixou de ser visto no percurso entre o palco onde falou e o portão. "Alguns metros depois, Puigdemont desapareceu do cortejo", descreveu o jornal elDiario.es, quando Rull e outros dirigentes que acompanhavam o líder independentista desde que descera do palco já estavam dentro do edifício do parlamento.

Um dia sem guião

“Sabia-se que não ia ser um dia fácil. Que seria histórico, também. Mas o que aconteceu esta quinta-feira de manhã no Parlamento e no exterior não estava escrito em nenhum guião. Enquanto Salvador Illa, candidato socialista a presidente da Generalitat, faz o seu discurso de investidura, os Mossos d'Esquadra procuram o antigo presidente da Generalitat, Carles Puigdemont”, relatou no site do El País a jornalista Ana Pantaleoni, redactora-chefe do diário em Barcelona. “Os Mossos activam a ‘Operação Gaiola’ para prender Puigdemont, enquanto Illa se compromete a garantir uma nação baseada na língua e na cultura”, escreveu.

Pouco depois das 10h, os Mossos activavam a operação para deter o ex-presidente catalão, que envolve controlos em todas as estradas da região autonómica. Segundo fontes policiais citadas por vários jornais, a suspeita é que viaje num carro branco com Turull, que em 2017 era conselheiro da presidência e porta-voz do seu govern. O carro pertencia ao agente que já foi detido. Perto das 14h, a polícia anunciava ter dado por terminada a operação que provocou o caos no trânsito, informando pelas 17h que se encontrava reactivada.

O discurso inicial do socialista durou 40 minutos, com Illa a defender o pacto que negociou com a Esquerda Republica da Catalunha (ERC), falando de “um passo em frente substancial e necessário para o nosso autogoverno”. “O meu objectivo é unir e servir todos os catalães”, afirmou. Terminada a intervenção, começaram as réplicas dos grupos parlamentares.

Teria sido a notícia do dia, não fosse o anunciado regresso de Puigdemont, assim, foi uma nota de rodapé: na véspera da investidura, o PSC e a ERC assinaram o acordo que vai permitir investir Illa e que prevê um regime fiscal especial (incluindo cobrança própria de impostos) para a região.

Em troca disso e da criação de um Departamento de Política Linguística no govern, com a aprovação de um Pacto Nacional para a Língua e a criação de uma Convenção Nacional para a resolução do conflito político entre a Catalunha e o Estado espanhol, os republicanos vão estar ao lado de Illa, que somará, assim, ao voto dos 42 deputados socialistas, os 20 da ERC e os seis dos Comuns, alcançando os 68 necessários para a maioria absoluta.

Ordem de detenção

Perante o que vê como “traição” dos antigos aliados no projecto independentista, Puigdemont responsabilizou a ERC pela sua esperada detenção. Na verdade, queria o apoio dos republicanos para tentar ele mesmo ser investido, apesar de saber que nunca teria apoios suficientes.

Quando anunciou que regressaria, durante a campanha para as eleições antecipadas de Maio, disse que viria para a sua própria investidura. Mas Illa conseguiu uma vitória histórica, pondo fim à maioria independentista e garantindo que a única maioria possível seria alcançada à esquerda.

Essa não foi a única expectativa de Puigdemont a sair frustrada: na altura, sabia que a Lei da Amnistia para os crimes do chamado procés estava prestes a ser aprovada. Entretanto, o Supremo Tribunal considerou que um dos crimes de que era acusado, desvio de fundos (de dinheiros públicos para organizar a consulta), não está abrangido pela lei negociada entre Pedro Sánchez e os partidos soberanistas.

Neste cenário, a ordem de detenção e captura assinada em 2017 por Pablo Llarena, juiz do Supremo Tribunal instrutor do caso, permanece válida. E tal como teria acontecido há sete anos, se Puigdemont for detido, caberá a Llarena decidir se o autoriza a declarar num tribunal da Catalunha ou se ordena a sua transferência para Madrid para testemunhar no Supremo Tribunal. Depois, terá ainda de decidir se ordena a prisão preventiva ou opta por outras medidas para reduzir o risco de fuga.

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