Uma volta a Portugal pelas cidades onde é fácil (e difícil) mudar de transporte

Uma visita a alguns dos bons e dos maus exemplos sobre como é possível sair de um comboio e apanhar um autocarro. Ou vice-versa.

Foto
O conceito de intermodalidade teve a sua grande estreia com a Gare do Oriente, em Lisboa, apenas em 1998 Margarida Basto
Ouça este artigo
00:00
22:07
  • Leia aqui toda a série "O que preocupa os portugueses?"

Não foi há muitos anos. Um estrangeiro que chegasse a Lisboa, habituado a boas redes de transportes no Norte da Europa, pasmava perante as idiossincrasias da capital portuguesa. Santa Apolónia não tinha ligação ao Metro. O Cais do Sodré também não. Nem Entrecampos nem Sete Rios. E a própria estação do Rossio não tinha uma ligação directa à estação homónima do Metro (que na verdade ficava na Praça da Figueira) nem aos Restauradores. A rede de metro fora construída desligada das principais estações de comboio. A Linha da Cintura foi durante décadas um atravessamento ferroviário da cidade sem grande utilização até que, finalmente, o seu potencial foi identificado, sendo hoje o eixo com maior utilização de passageiros de Lisboa.​

O conceito de intermodalidade — pontos da rede em que o utilizador tem acesso a vários modos de transporte — tardou a implantar-se em Portugal e teve a sua grande estreia com a Gare do Oriente, em Lisboa, apenas em 1998. Mas no resto do país, em cidades onde basicamente só há comboio e autocarro, operadores e autarcas nem sempre trabalharam juntos para encontrar soluções de mobilidade amigas dos utilizadores e que, curiosamente, muitas vezes nem exigiam investimentos avultados. Tão-só um pouco de racionalidade e decisões acertadas.

Esta é uma volta a Portugal pela intermodalidade, não exaustiva, sem outro critério que o de visitar alguns dos bons e dos maus exemplos do cruzamento entre rodovia e ferrovia — no fundo, apontar para onde é possível sair de um comboio e apanhar um autocarro. Ou vice-versa.

Primeira paragem: norte

Um dos melhores casos de boas práticas fica a norte, em Viana do Castelo. O terminal rodoviário foi inaugurado em Setembro de 2004 pelo então presidente da câmara, Defensor Moura, junto à estação de caminhos-de-ferro. Comporta 18 cais destinados a autocarros, além de 12 gabinetes para os operadores de transportes, cinco lojas, um bar e um gabinete especial para a instalação e apoio dos alunos da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM).

Luís Nobre, o actual presidente da Câmara de Viana, contou ao P2 que a sua entrada em funcionamento “integrou a política de mobilidade com uma centralização de estruturas para dar uma melhor resposta aos cidadãos, já que previa uma relação espacial intermodal entre o terminal de táxis, do interface e da estação de caminhos-de-ferro”.

Foto
A estação de Viana é um bom exemplo: a mudança do autocarro para o comboio (e vice-versa) está hoje muito facilitada Nelson Garrido

Com efeito, a mudança do autocarro para o comboio (e vice-versa) está hoje muito facilitada. O presidente da câmara diz que “esta foi a melhor forma de servir os utentes que, até ali, tinham uma central de camionagem numa das saídas da cidade [entretanto desactivada e substituída por um hotel] e porque faz a ligação directa a diversas estruturas da cidade, como o hospital, o centro histórico e os diversos parques de estacionamento.”

Aveiro é também um bom exemplo de intermodalidade desde que em 2018 foi inaugurado o terminal rodoviário, contíguo à estação ferroviária. Nele afluem as carreiras interurbanas da cidade, os autocarros da Rede de Expressos e da Citi Express e os serviços internacionais da Internorte.

Do lado dos carris, Aveiro é a única estação ferroviária onde existe uma intermodalidade perfeita da via larga com a via estreita: os comboios da Linha do Vouga (vulgo “Vouguinha”) terminam ali a sua marcha, coexistindo com os alfas, intercidades, regionais e o serviço suburbano do Grande Porto.

Foto
Em Espinho os comboios do Vouga “morrem” a 600 metros da estação da Linha do Norte ANA LUISA SILVA

O mesmo não se pode dizer da estação de Espinho, onde os comboios do Vouga “morrem”, sem honra nem glória, a 600 metros da estação da Linha do Norte, naquilo que é uma das piores soluções de intermodalidade em Portugal. Em 2008, Espinho enterrou a via-férrea, passando a estação a ser subterrânea. E com isso quebrou a ligação fácil que havia com a Linha do Vouga, obrigando os passageiros a deslocarem-se a pé entre as duas estações. Neste caso, o que antes estava bem passou a estar mal.

Problemas crónicos

Carlos Oliveira Cruz, coordenador do livro Sistemas de Transportes em Portugal, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, explica que esta publicação é essencialmente sobre redes, nas quais a intermodalidade desempenha um papel muito importante, porque os interfaces intermodais são os pontos de cruzamento dessas redes. “Em Portugal temos um problema crónico que é o planeamento das redes ser feito por entidades distintas e, por isso, não haver um planeamento integrado. As redes de transporte público rodoviário são essencialmente pensadas pelos municípios, pelas áreas metropolitanas e pelas CIM [comunidades intermunicipais], enquanto as redes ferroviárias são pensadas pela administração central.”

Muitas das estações rodoviárias foram construídas pelos próprios operadores, que eram as antigas empresas de camionagem. “Historicamente, essas gares tinham uma função muito mais ligada à operação da empresa do que uma visão voltada para o passageiro e para a rede de transportes”, diz o investigador. “Algumas até tinham camaratas para os motoristas e cobradores dormirem”, acrescenta Orlando Ferreira, que foi quadro da Barraqueiro e conhece a história dos terminais rodoviários. “Havia empresas, como os Capristanos, que tinham uma grande preocupação com o serviço e fizeram estações modernas e confortáveis; e outras, como os Claras, que estavam mais focados na inovação dos procedimentos administrativos e para quem os terminais, na prática, eram apenas umas garagens.” Nos “momentos de verdade” do serviço, os Capristanos eram imbatíveis, o que se reflectia também na diferenciação dos seus terminais”.

Exemplo paradigmático de um terminal rodoviário marcante é o das Caldas da Rainha, cujo edifício foi desenhado pelo arquitecto Ernesto Korrodi e que fica a escassos 500 metros da estação ferroviária. Hoje pertence à Barraqueiro, tal como as estações de Alcobaça e Torres Novas (esta última dos antigos Claras). Outro exemplo curioso é o terminal de Caneças, da velha empresa de camionagem Arboricultora, Lda., hoje da Barraqueiro.

Este grupo detém ainda os velhos terminais de Setúbal (construído pelos Belos) e de Beja, que foi um investimento conjunto dos Belos e da EVA – Empresa de Viação do Algarve. Nesta última, um muro interior separava a operação das duas empresas de camionagem.

Na actualidade, Carlos Oliveira e Cruz refere Campanhã como um dos bons exemplos de intermodalidade. Após a inauguração da parte rodoviária, foi possível pôr um conjunto vasto de serviços interurbanos em conexão com a ferrovia, ela própria com serviços suburbanos, regionais e de longo curso. Mas o especialista alerta que “os STCP não têm ali um grande pólo de distribuição capilar”, pelo que Campanhã ainda não é um exemplo acabado de intermodalidade perfeita.

Já a Gare do Oriente é o melhor exemplo de intermodalidade em Portugal, mas beneficiou do facto de ter sido pensada e construída de raiz, numa zona em que havia espaço e integrada numa “nova cidade” que se ergueu na zona oriental de Lisboa à boleia da Expo-98. Tem tudo: comboios e autocarros urbanos e interurbanos, regionais e de longo curso. E ainda o metro.

Foto
A Gare do Oriente é o melhor exemplo de intermodalidade em Portugal, mas beneficiou do facto de ter sido pensada de raiz Mafalda Melo

O também professor do Instituto Superior Técnico diz que “em Portugal se tem dedicado muita atenção às redes, mas temos de garantir que são planeadas e articuladas em conjunto”. Numa nota mais positiva, Carlos Oliveira Cruz deposita grandes esperanças na alta velocidade ferroviária e no efeito que vai ter na intermodalidade. “É uma grande oportunidade, porque o facto de haver estações novas, ou reconstruídas, em Gaia, Coimbra e Leiria vai permitir corrigir erros do passado e desenhar novas redes de transportes.” O especialista diz ainda que a construção da linha em bitola ibérica permitirá mais facilmente fazer a ligação com a rede de comboios convencionais, sendo desejável que nesses nós intermodais também haja serviços rodoviários urbanos e interurbanos.

Será também a linha de alta velocidade a quebrar o “enguiço” português que é o facto de nenhum dos seus três aeroportos estar ligado à ferrovia. “Com a linha Porto-Vigo a passar pelo Aeroporto Sá Carneiro, cria-se ali mais um pólo intermodal muito importante, que permitirá aos utilizadores do aeroporto acederem a um conjunto de destinos no país praticamente à saída do avião.” No entanto, Lisboa e Faro (e Beja) continuam desligadas da ferrovia, fruto de, como diz Carlos Oliveira Cruz, “termos tido entidades diferentes a planear diferentes ramos do sistema”. A ligação desses aeroportos ao comboio tem sido estudada – sem nunca sair do papel.

Vaivém

Torres Vedras joga no campeonato dos maus exemplos. Há dez anos, o terminal rodoviário, que ficava no centro da cidade mesmo ao lado da estação de caminho-de-ferro, foi deslocalizado para o outro extremo da cidade. Carlos Miguel, à época presidente da autarquia, explica porquê. “Houve duas grandes motivações e uma realidade. A rodovia naquele sítio, procurada essencialmente por quem ia trabalhar para Lisboa, fazia com que se ocupasse toda aquela área com estacionamento que, na prática, era das sete da manhã às oito da noite, impedindo o estacionamento móvel de quem queria aceder aos serviços e ao comércio da cidade. Depois, com o fluxo constante de autocarros na principal avenida da cidade (a Avenida General Humberto Delgado), tínhamos um problema grave de congestionamento e ambiental. E a terceira motivação é uma realidade que ainda hoje se mantém — uma ferrovia que não funciona, uma linha de caminho-de-ferro que tem três ou quatro comboios por dia. Por isso, decidimos instalar o terminal rodoviário na zona poente da cidade, mais acessível e com mais estacionamento.”

O também ex-secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território do Governo de António Costa diz ainda: “O comboio em Torres Vedras é uma realidade quase inexistente, mas com uma outra vida que todos desejamos [há obras de modernização em curso na Linha do Oeste] será fácil implementar um sistema de vaivém entre a estação ferroviária e o terminal rodoviário.”

No mesmo ano (2014) em que Torres Vedras afastava a estação rodoviária da estação de caminho-de-ferro, Castelo Branco inaugurava o seu terminal rodoviário mesmo ao lado da estação dos comboios. Ali chegam e partem os Intercidades vindos de Lisboa para a Guarda e os regionais da Beira Baixa. E, quando a Linha da Beira Alta estiver modernizada, a CP já anunciou que pretende fazer comboios da Cova da Beira para o Porto. A poucos metros dos carris, o terminal rodoviário oferece autocarros para todas as localidades do concelho, bem como para grande parte das cidades do país e ainda Espanha e França.

O presidente da câmara actual, Leopoldo Rodrigues, diz que “os valores políticos que basearam essa decisão estiveram relacionados com a necessidade de criar uma solução urbanística viável, assente num modelo que permitisse definir uma estrutura urbana equilibrada e funcional do ponto de vista social e melhorar as condições de circulação dos serviços rodoviários e de transporte de pesados”. O autarca refere ainda “a melhoria do ambiente urbano, sobretudo do conforto ambiental da população e do edificado”.

Foto
Torres Vedras joga no campeonato dos maus exemplos Rita Chantre

A solução encontrada, que inclui também uma praça de táxis, “permite uma posição de destaque da cidade de Castelo Branco no eixo do desenvolvimento e coesão territorial, não apenas servindo a população do concelho e dos três pólos da região Guarda-Covilhã-Castelo Branco, mas também os visitantes nacionais e turistas que, ao longo do ano, entram no país vindos das cidades da Europa”, diz Rodrigues.

Vamos agora para o litoral, para Leiria, que vai construir um novo terminal rodoviário no centro da cidade. Já acima se disse do potencial da linha de alta velocidade para fazer intermodalidade pura ao ligar os comboios (rápidos e convencionais) com os transportes rodoviários que asseguram a capilaridade do sistema. Assim será em Aveiro e Coimbra, mas a autarquia de Leiria foi em sentido contrário e aposta num grande terminal rodoviário, junto ao estádio, no valor de 2,5 milhões de euros.

Porquê? “Não podemos esperar eternamente pela solução da ferrovia”, explica Gonçalo Lopes, presidente da Câmara de Leiria. “Se tivéssemos optado por construir o terminal junto da estação actual, seria um erro, porque tudo indica que vão fazer uma estação nova na Barosa, a cinco quilómetros da cidade. Não podemos estar dependentes destas indefinições, porque num ano é num local e noutro ano é noutro.”

O autarca refere-se às soluções preconizadas pela IP, que a dado momento queria assegurar o serviço de alta velocidade na actual estação de Leiria (que fica afastada cerca de dois quilómetros da cidade), mas optou depois por avançar com uma estação nova na Barosa (entre Leiria e Marinha Grande). “Agora que a cidade tinha chegado à estação ferroviária, ela dá um pulo e fica noutro sítio”, diz Gonçalo Lopes, referindo-se à expansão da malha urbana que nos últimos 50 anos se aproximou de Leiria-Gare.

Enquanto a alta velocidade continua a ser uma miragem (na primeira fase a linha Porto-Lisboa morre em Soure, perto de Leiria, sendo necessário esperar por uma segunda fase para que esta prossiga para sul servindo a cidade), o município pediu um estudo a uma consultora para a localização do novo terminal rodoviário, que recomendou a sua construção junto ao estádio municipal. O presidente da câmara diz este equipamento será essencialmente útil para os jovens que afluem aos estabelecimentos de ensino da cidade, bem como para o grande afluxo de serviços de longo curso que passam por Leiria (a Rede Expressos tem ali um importante hub).

Embora admita uma candidatura a fundos comunitários, Gonçalo Lopes diz que o pagamento da utilização daquela infra-estrutura pelos operadores rodoviários viabiliza o investimento, o qual deverá estar construído em finais de 2025.

Quanto à estação de alta velocidade, esta também terá de ter um terminal rodoviário, se bem que mais modesto, a partir do qual será criado um serviço de vaivém com o centro de Leiria.
Entretanto, o velho terminal rodoviário, construído em conjunto pelas antigas empresas Oliveiras, Claras e Belos será demolido.

“Isso do comboio” não interessa

Coimbra é outra cidade bafejada pela alta velocidade, o que constituiu uma oportunidade para fazer uma grande estação intermodal em Coimbra B. O terminal rodoviário até nem fica muito longe da ferrovia, mas o caminho a percorrer é desagradável, por entre cruzamentos, rotundas e os pilares dos tabuleiros rodoviários, acompanhado de um trânsito intenso e ruidoso. Em suma, a ligação entre o comboio e o autocarro não é agradável, nem convida a soluções de viagem com os dois modos de transporte.

O terminal rodoviário, que é explorado pela Transdev (que paga uma renda ao proprietário do edifício), deverá ser desactivado e ter novos usos, enquanto a operação rodoviária deverá passar para o futuro complexo intermodal desenhado pelo arquitecto Joan Busquets. De acordo com a vereadora da Câmara de Coimbra, Ana Bastos, o Plano de Pormenor para a Estação Intermodal de Coimbra prevê juntar no local da estação de Coimbra B o comboio, o autocarro, o Metro Mondego, uma praça de táxis e estacionamento, incluindo uma particular atenção para o estacionamento de bicicletas e trotinetes.

A nota negativa, que tem provocado protestos da população, é a desactivação da estação ferroviária central (também designada “estação nova” ou Coimbra A), com o pretexto de que o Metro Mondego servirá a futura “gare do Oriente” conimbricense. Uma decisão que contraria as melhores práticas na Europa, onde é considerada uma vantagem ter o comboio a chegar ao centro da cidade.

Nesta volta a Portugal da intermodalidade, Faro tem o terminal rodoviário bem perto da estação onde arribam os intercidades de Lisboa e o Alfa Pendular do Porto (para além de todos os regionais do Algarve). Essa proximidade não resultou de uma grande decisão estratégica. Foi fruto do acaso. A estação rodoviária foi construída pela EVA como parte integrante do hotel homónimo, que ainda hoje existe. Nacionalizada a EVA após o 25 de Abril, as “camionetas da carreira” (como então se designavam) e a respectiva garagem farense passaram para a Rodoviária Nacional, sendo hoje, após a privatização, propriedade da Barraqueiro. Embora o percurso a pé entre as duas estações não esteja muito facilitado, a sua proximidade faz de Faro um bom exemplo de intermodalidade. Isto, apesar de mais do que um autarca já se ter queixado do efeito barreira que a linha férrea tem na cidade (atravessa a zona ribeirinha) e desejar expulsá-la para os arredores. Terrenos desimpedidos em frente à ria valem mais do que o comboio a chegar ao centro da cidade.

Foto
Faro tem o terminal rodoviário bem perto da estação onde arribam os comboios. Mas a proximidade foi fruto do acaso Nuno Ferreira Santos

Há situações em que dificilmente ocorreria uma boa intermodalidade entre a ferrovia e a rodovia. Guarda, Covilhã, Santarém, Abrantes, Portalegre, Beja são cidades onde o caminho-de-ferro chegou, ainda no séc. XIX, mas sem força nem vontade para subir até à urbe, que ficava lá no alto. De resto, à época, a chamada “viação acelerada” não precisava de se aproximar do centro das cidades, porque todo o tráfego de passageiros e de mercadorias lhe rendia vassalagem face à velha alternativa da carroça e da diligência. Um século e meio depois, as cidades expandiram-se, mas a velha estação ferroviária continuou excêntrica, “lá em baixo”, enquanto os terminais rodoviários facilmente se instalaram no seu centro.

Em Santarém, a central de camionagem, que remonta ao tempo dos Roques (Camionagem Ribatejana, Lda.) e dos Belos, pertence hoje à CIM Lezíria do Tejo que assegura grande parte do transporte público rodoviário da região. Já a “estação da CP”, bastante usada pelos escalabitanos nas deslocações pendulares a Lisboa, possui um bom parque de estacionamento, mas os autocarros urbanos não estão alinhados com os horários dos comboios.

Onde os autocarros também não estão a prestar um bom serviço à intermodalidade é em Albufeira, Loulé-Gare e Valados dos Frades, para só citar mais três exemplos. No Algarve, a estação das Ferreiras é a mais próxima de Albufeira, mas o passageiro do comboio não pode estar seguro de ter um autocarro de ligação. O mesmo acontece em quem desembarca em Loulé, pois tanto a ida para a cidade, como para a Quarteira não tem “serviço combinado com a CP”, como em tempos se dizia.

No Oeste, Valado dos Frades é equidistante de dois importantes pólos turísticos — Nazaré e Alcobaça, que ficam a seis quilómetros. Mas o incauto que se atrever a apanhar o comboio para estes destinos fica apeado na estação do Valado, a qual, de resto, é servida por um medíocre serviço por parte da CP. Tal não incomoda o ex-autarca da Nazaré, Walter Chicharro, que à Comissão para a Defesa da Linha do Oeste respondeu uma vez que “isso do comboio” não lhe interessava, porque já tinha a sua vila sempre cheia com turistas.​

Morrer na praia

Retomemos a volta a Portugal da intermodalidade rodo-ferroviária (ou ferro-rodoviária, porque a ordem dos factores é arbitrária). No Algarve havia em Lagos uma singela e bonita estação ferroviária com muito espaço disponível à sua frente e que nem ficava longe do centro da cidade. Mas em 2003 decidiram afastá-la um pouco mais do centro e construir uma espécie de apeadeiro incaracterístico, um terminal ferroviário anódino que espelha bem o quão pouco importante é o comboio para Lagos.

Em tempos, havia comboios directos dali para o Barreiro, numa época em que ainda não existia a A2 nem a Via do Infante, mas agora, depois de em 2004 passar a haver uma via-férrea directa para a capital (graças ao comboio na Ponte 25 de Abril), Lagos tem apenas umas velhas automotoras que se arrastam penosamente, parando em todas as estações e apeadeiros, pelo litoral algarvio.

O terminal rodoviário fica relativamente perto, a 500 metros da estação ferroviária, do outro lado da ribeira de Bensafrim. Não há qualquer sinalética a indicá-lo. Mas espaço não faltava em torno da estação dos comboios para ali se poder ter construído um grande terminal intermodal, se essa tivesse sido a decisão das autoridades municipais.

No outro extremo do Algarve, Vila Real de Sto. António foi até 1999 um bom exemplo de intermodalidade ferro-fluvial. A estação terminus — designada muito significativamente Vila Real de Sto. António Guadiana — ficava em pleno centro da cidade, ao lado do terminal fluvial, permitindo uma conectividade perfeita com os ferries para Ayamonte. Nessa altura também se viajava dali directamente para o Barreiro, mas quando em 2004 o Algarve passou a ter comboios directos para Lisboa, já Vila Real tinha desactivado esta estação, passando o serviço a “morrer” noutra estação, à época nos arredores da cidade (mas hoje já bem integrada na malha urbana). Por ironia, hoje os autocarros expressos têm o seu terminus junto à antiga estação ferroviária.

Foto
Vila Real de Sto. António foi até 1999 um bom exemplo de intermodalidade ferro-fluvial. A estação ficava em pleno centro da cidade, ao lado do terminal fluvial,dos ferries para Ayamonte Adriano Miranda

Em Tavira há carreiras locais que passam na estação dos comboios, mas a central rodoviária fica a 1200 metros desta.

Também em Portimão se assiste a um mau exemplo de planeamento de infra-estruturas de transporte, algo assim como “morrer na praia”, uma indiferença gritante perante aqueles que são a razão de ser dos comboios e autocarros — os passageiros.

Basta ir ao Google Maps e ver que do outro lado da via-férrea da estação de Portimão se situam as oficinas dos autocarros da EVA. Ali, paredes meias com os comboios a passar. Mas o terminal rodoviário fica um pouco mais longe. E não há uma passagem inferior sob a linha para encurtar a distância entre as duas estações. Até parece que foi feito de propósito, pois bastava trocar a localização das oficinas da EVA com o terminal rodoviário, construir uma passagem desnivelada e teríamos uma integração perfeita entre os dois modos de transporte.

É isso que está na calha, explica o vereador da Câmara de Portimão José Pedro Cardoso. O município tenciona negociar com a Barraqueiro (detentora da EVA) uma solução que pretende reposicionar o terminal rodoviário encostado à linha do comboio e construir uma passagem superior para ligar as duas estações. O autarca diz que a situação já foi pior, quando o terminal rodoviário era na zona ribeirinha da cidade, mas reconhece que a solução actual ainda deixa muito a desejar.

No centro do país, em Pombal, há um exemplo de uma solução perfeita. Aqui há uma linha férrea e um rio a separar a estação dos comboios da estação dos autocarros, mas bastou uma passagem subterrânea a ligar ambos os lados e a intermodalidade obteve-se sem grandes custos. Pelo meio, ligou-se dois lados da cidade e construiu-se um parque de estacionamento. Está tudo integrado.

O mesmo já não acontece em Guimarães, cuja central rodoviária dista dois quilómetros da estação dos comboios.

Foto
Em Braga, a ligação do comboio ao designado “Centro Coordenador de Transportes” é feita ao longo de um quilómetro e meio por um caminho sinuoso André Rodrigues

Nem em Braga, onde a ligação do comboio para o designado “Centro Coordenador de Transportes” é feita ao longo de um quilómetro e meio por um caminho sinuoso. Segundo o jornal Vilaverdense, o edifício foi construído na década de 70 com verbas do então Fundo de Transportes Terrestres, ficou concluído em 1974, mas só em 1976 começou a funcionar, então sob gestão da empresa pública Rodoviária Nacional.

Hoje a Câmara de Braga tem um projecto de 30 milhões de euros para uma nova central de camionagem, mas no mesmo sítio. Na prática, é um empreendimento imobiliário com um milhão afecto ao terminal rodoviário e 29 milhões a suportar por privados com a contrapartida de construção de apartamentos e escritórios. A intermodalidade não fica a ganhar nada.

E terminemos no Douro com uma curiosidade — uma intermodalidade ferro-fluvial! Fica em Caldas de Aregos, cuja estação de caminho-de-ferro fica na margem direita do Douro, mas um táxi fluvial assegura a cada comboio a ligação à margem esquerda, onde se situa a pequena estância termal. O serviço é público, assegurado pela Câmara de Resende. Só tem uma nuance: funciona apenas durante o dia, pois à noite a navegação está proibida.


O estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos estão disponíveis para download gratuito em ffms.pt/estudos/estudos


Clique aqui para saber mais sobre conteúdo apoiado no PÚBLICO

Sugerir correcção
Ler 11 comentários