A luta das marias-rapazes com os super-homens

À boleia de uma discussão difícil (a da participação de transexuais em competições femininas), assistimos a uma ofensiva conservadora em torno das representações sociais da mulher no desporto.

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A história do desporto é marcada pela superação e pela desigualdade. Isso mesmo está inscrito no lema olímpico: citius, altius, fortius. Nas Olimpíadas celebramos os mais rápidos, os mais altos e os mais fortes. Celebramos precisamente a desigualdade dos corpos e com ela os atletas de excelência.

Nesta semana, quando na abertura do boxe feminino uma atleta argelina revelou uma superioridade física notável, obrigando a sua adversária a desistir ao fim de curtos 46 segundos de combate, o que foi exaltado não foi o facto de Imane Khelif se ter revelado muito mais rápida, muito mais alta e muito mais forte do que Angela Carini. Pelo contrário, foi alegado que o combate era injusto. Khelif não seria uma mulher.

O tema da participação de mulheres transgénero em competições desportivas femininas é muito complexo. Quem o negar e se limitar a reafirmar posições lineares não está a ajudar nem os direitos humanos, nem a equidade desportiva (dois valores que se encontram em tensão). Apesar de tudo, o Comité Olímpico e as diversas federações têm dado passos importantes, construindo soluções que buscam o equilíbrio. Haverá ainda muita investigação a fazer e definição de critérios rigorosos para que nos aproximemos cada vez mais de uma ideia de justiça, o que se tem tornado progressivamente mais sensível nos desportos femininos.

Mas essa é outra discussão. Neste caso, Imane Khelif é uma mulher cisgénero que, no entanto, tem níveis elevados de testosterona (aliás, como acontece também com a atleta de Taiwan Lin Yu-ting). No que releva, as suas características genéticas não resultam de nenhuma intervenção de transição sexual, mas da sua natureza. Ou seja, as vantagens competitivas que Khelif apresenta não são fruto da sua vontade (se bem que já tenha perdido combates para nove mulheres diferentes). Mais, Khelif nasceu mulher, numa região rural de um país muçulmano e homofóbico, a Argélia. Talvez seja também altura de refletirmos sobre a forma como a própria e os seus familiares estarão a viver esta desumanização global, que não poderá deixar de ter consequências.

Deste ambiente polarizado avesso à empatia e à complexidade resulta, contudo, um outro efeito, o da ocultação. À boleia de uma discussão difícil (a da participação de transexuais em competições femininas), assistimos a uma ofensiva conservadora em torno das representações sociais da mulher no desporto. Uma história de séculos que demonstra como o sexismo continua profundamente enraizado nas nossas sociedades.

Retomo a superioridade física de Imane Khelif para sublinhar uma diferença olímpica. Quando se trata de uma rapariga com particular propensão para a prática desportiva, frequentemente, numa versão suave, estamos perante uma maria-rapaz ou, se for particularmente competitiva, ouvimos dizer, “parece um homem”. Pelo contrário, o arquétipo do atleta masculino fixa-se algures entre o super-homem e o extraterrestre. No fundo, é como se existisse um contínuo, em que depois da rapariga vem a maria-rapaz; depois da maria-rapaz, o homem; depois do homem, o super-homem; e depois do super-homem, o extraterrestre.

Neste sentido, da perspetiva conservadora, para uma mulher, competir com Imane Khelif não é justo. Já quando os homens competiam com o “super-homem” Usain Bolt ou com o “extraterrestre” Michael Phelps, esquecíamos os derrotados para, justamente, exaltar a superioridade física dos vencedores. Convém por isso recordar que uma das coisas que distinguem os atletas de topo na alta competição é terem uma enorme vantagem face aos seus contemporâneos. É assim para os homens e para as mulheres.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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