Sabino chorou, Gill está só, Fiti tem dentes de ouro e Maibuca corre com aviões

Uma manhã nas pré-eliminatórias dos 100m do atletismo, onde se cruzam histórias de desespero, superação, deslumbramento e muitos recordes pessoais.

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Os 100m são uma espécie de volta ao mundo, com atletas de todas as partes do planeta Fabrizio Bensch / REUTERS
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Kenaz Kaniwete, do Kiribati, o mais novo do atletismo olímpico em Paris Alina Smutko / REUTERS
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O mundo inteiro está nos 100m do atletismo olímpico. Nos Jogos de Paris, das 206 comitivas presentes, 82 estão representadas no hectómetro masculino (a França, que tem direito a ter atletas em todas as provas, não está) e, destes 82, 46 entram a competir nas pré-eliminatórias, pelo direito de correr ao lado dos norte-americanos e dos jamaicanos. Karalo Maibuca, que bateu o recorde de Tuvalu e treina numa pista de aviação, Steven Sabino, o moçambicano que foi desqualificado, Shaun Gill, futuro engenheiro e único atleta do Belize em Paris, e Scott Fiti, o sprinter dos dentes de ouro da Micronésia, não vão chegar tão longe.

Nas seis séries das pré-eliminatórias dos 100m, bateram-se 13 recordes pessoais, dos quais quatro foram recordes nacionais. Um deles foi de Karalo Maibuca, o “torpedo” de Tuvalu, que se tornou no homem mais rápido da sua pequena ilha no meio do Pacífico, ao ser último da sua série, com 11,30s.

“A minha cabeça estava um bocadinho perdida, pelo menos acabei a corrida [risos]”, admitia o homem do Pacífico Sul, depois de cumprida a sua segunda missão olímpica – esteve em Tóquio há três anos, onde foi, tal como em Paris, um dos porta-estandartes do pequeno país insular.

Tuvalu é um pequeno ponto no meio do Oceano Pacífico. Ou melhor, são nove pequenos pontos com uma área total de 26 quilómetros quadrados, e nenhum ponto de nenhuma das nove ilhas (já foram 11) está a mais do que 4,5 metros acima do nível do mar.

As alterações climáticas colocam o quarto país mais pequeno do mundo no topo de uma lista em que ninguém quer estar: em 50 anos pode ser totalmente engolido pelo oceano. Tudo no arquipélago está em risco de desaparecer e essa é uma preocupação presente e futura para o homem mais rápido de Tuvalu.

“É um dos países mais pequenos do mundo, com uma população pequena, e, por causa das alterações climáticas, temos cada vez menos terra”, lamenta este estudante de 25 anos, que, como todos os habitantes do arquipélago, tem de ser criativo para fazer algo parecido com uma preparação.

“Em Tuvalu, treinamos numa pista de aterragem. É triste, mas é a nossa realidade. Usamos a pista de aterragem, ou treinamos na relva, é difícil preparar para estas coisas. No futuro? Espero que passem um cheque para termos uma preparação melhor.”

“Não me deixaram correr”

Steven Sabino, moçambicano de 18 anos que vive e treina na África do Sul, apresentava-se em Paris com uma marca mais do que respeitável nos 100m – 10,35s. E não seria difícil imaginá-lo numa das séries mais avançadas ao lado de um Noah Lyles ou de um Marcel Jacobs. Mas o jovem moçambicano antecipou-se ao tiro de partida e foi desqualificado – ele bem tentou argumentar com os juízes, mas em vão. A sua aventura olímpica tinha acabado antes sequer de começar e, logo na pista, começou a chorar compulsivamente.

Quando passou pela zona mista, as lágrimas continuavam a cair do seu jovem rosto, desconsolado, sem vontade de falar e ainda sem acreditar no que lhe tinha acontecido.

“Treinei tanto para estar aqui. Fomos para os blocos, ouvi um bang, não sei de onde veio, fui protestar, mas eles nem me ouviram, não me deixaram correr. Implorei quatro vezes, mas eles negaram. Peço desculpa aos meus pais e a todos os que estão lá em casa”, foram as palavras que lhe saíram entre as lágrimas. Só uma coisa lhe ocupava o pensamento, e nem sequer queria falar do todo o futuro que tem pela frente. “Agora não tenho cabeça para isso. Desculpa.”

Na mesma série que Sabino não correu, estava Kenaz Kaniwete, um jovem de 16 anos de Kiribati, o mais jovem de todo o atletismo olímpico em Paris. Algo envergonhado e ainda cansado por ter corrido em 11,29s (recorde pessoal), o adolescente só prometeu fazer melhor no futuro – e, com a idade que tem, ainda pode ir a mais cinco Jogos. Vai ter muito tempo para se habituar a estas coisas de pistas e cronometragens electrónicas.

“Sim, sei que sou o mais novo do atletismo aqui em Paris. Estou orgulhoso e bati o meu recorde, sinto-me bem. Em Kiribati, não temos pista, eu treino na praia e na areia e sem marcador electrónico. Para correr numa pista, tenho de ir à Austrália.”

“Atleta a tempo inteiro”

Um dos objectivos do PÚBLICO na zona mista era Maleselo Tokofuka, do Tonga – metido nos 100m porque não tinha lugar no decatlo, a sua especialidade. Ele vinha com um dos piores tempos de inscrição e confirmou esse estatuto com o pior tempo destas “prés” – 12,11s, o único acima dos 12 segundos, ainda assim, um novo recorde pessoal. Mas ele passou a correr pela zona mista e não deu para falar com ele - nem com Manuel Ataíde, de Timor-Leste, um oitocentista de raíz treinado pela mãe.

Em alternativa, avançámos para Scott Fiti, o velocista dos Estados Federados da Micronésia, que é feito para os Jogos Olímpicos e não passa despercebido. Tatuagens abundantes e dois dentes de ouro distinguem Fiti dos outros. E descontracção total. Nada de cansaço ou intimidação. Os Jogos Olímpicos foram feitos para ele e ele foi feito para os Jogos Olímpicos. “Ah, libertar o stress…”, é a primeira coisa que diz, depois de ter feito o seu melhor tempo do ano na quarta série (11,61s).

“Já faço isto há muito tempo. Sinto-me sempre excitado com isto. Não tenho muito apoio, mas isso não me preocupa muito. Só queria estar aqui e cortar a meta. Los Angeles? Talvez, mas agora só quero descansar”, comenta o velocista do sorriso dourado, que não faz mais nada na vida a não ser correr. “Atleta a tempo inteiro”, garante. E nós acreditamos.

E qual é a sensação de ser o único representante do seu país nos Jogos Olímpicos? Em Paris, Shaun Gill é um dos poucos que pode responder a esta pergunta, como o solitário atleta a carregar as esperanças olímpicas do Belize. Como se esperava, a sua aventura na capital francesa durou pouco, 11,17s.

Mas, aos 31 anos, Gill, que vive e treina nos EUA (no Texas), está pronto para deixar para trás o seu sonho da velocidade, que lhe deu entrada em dois Jogos Olímpicos, e entrar na vida do homem comum, como engenheiro industrial.

“A minha participação não foi grande coisa, mas é uma óptima maneira de ir. Sinto-me bem com isso. Agora, vou ser engenheiro a tempo inteiro, no mundo real. Ainda não tenho emprego, mas pode ser que alguém veja, com estas entrevistas todas.”

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