Beber Colares é defender viticultores em vias de extinção

O ritmo é lento, mas aos poucos as vinhas de chão de areia regressam. Está na hora de fazermos a nossa parte: comprar garrafas e espalhar uma cultura vitícola que é única no mundo.

Foto
Esta forma artesanal de plantio permite proteger as plantas contra os ventos húmidos que chegam do Atlântico Andre Mata (DR)
Ouça este artigo
00:00
05:13

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

É provável que, depois do que acontece no Pico, na Graciosa e da Terceira, a viticultura de Colares seja uma das mais heróicas e irracionais do mundo (a par daquela que também se pratica na ilha de Lanzarote, mas isso agora não interessa).

Em Colares, há dois tipos de vinhas próximas do mar: as de chão de areia (fazem-se covas em terrenos de areia, à procura da argila para se plantar videiras em modo de pé franco) e as de chão rijo (videiras enxertadas e plantadas em solos argilocalcários). O que nos interessa hoje são as primeiras, que são a arte de proteger as plantas contra os ventos marinhos e húmidos que chegam do Atlântico, permitindo que a areia em si ajude a reter calor (escasso) para a maturação das uvas.

Hoje, as covas podem ser feitas com uso de retroescavadoras, mas noutros tempos era tudo feito à enxada, com consequências por vezes dramáticas. É que, na busca da argila, uma cova tanto podia estar a meio metro como a um ou dois metros de profundidade. Ora, acontecia que, de quando em vez, a areia desabava tão silenciosamente sobre quem estava a cavar que os restantes trabalhadores ao lado, noutras covas, não davam por nada. Ou melhor, quando davam pelo acidente já era demasiado tarde. Até que, um dia, reza a história, alguém teve a ideia luminosa de cavar as covas com um cesto de vimes enfiado na cabeça, à laia de capacete. Porquê? Porque, em caso de desabamento da areia, o trabalhador soterrado ficava com uma câmara de oxigénio suficiente para respirar até ao momento que um camarada ao lado desse pelo desastre e desatasse a cavar a areia para o salvar. Assim se salvaram vidas em Colares.

Mas isso são outros tempos. Recentemente, vimos a instalação de uma nova vinha da Adega Viúva Gomes, que é, apesar do recurso a tecnologias contemporâneas, uma espécie de guardiã das tradições. José Baeta e o filho Diogo plantaram cerca de um hectare de vinha em chão de areia, com as castas Malvasia de Colares (branca) e Ramisco (tinta). Em 2023 foram às vinhas próprias e às vinhas vizinhas e cortaram varas que foram enterradas para enraizamento. Este ano meteram cada uma das varas com raízes em covas estrumadas, sendo que nuns casos a argila estava a dois ou três palmos e noutros a dois metros de profundidade – sistema que deixaria um viticultor da Califórnia ou do Chile à beira de um ataque de nervos. E, a seguir, como nos diz José Baeta, “reza-se para que a taxa de insucesso não ultrapasse os 30% porque dá muito trabalho a plantar as falhas”.

Em 2023, varas retiradas de vinhas adultas foram enterradas para enraizamento. Agora foram plantadas. Andre Mata/DR
As trincheiras para colocação das varas são hoje feitas por máquinas. Em alguns casos, é preciso escavar dois metros de profundidade para encontrar chão de argila. Andre Mata/DR
As varas com raízes são depositadas em covas, previamente preparadas com estrume. Andre Mata/DR
A trincheira é depois novamente coberta de areia, o que permitirá à planta crescer abrigada dos ventos húmidos do Atlântico. Andre Mata/DR
Fotogaleria
Em 2023, varas retiradas de vinhas adultas foram enterradas para enraizamento. Agora foram plantadas. Andre Mata/DR

Claro que o ataque de nervos dos tais viticultores californianos e chilenos não teria que ver apenas com o sistema de plantação artesanal da vinha, mas com os níveis de produção destas. Um hectare de vinha de Malvasia em sistema de chão de areia e aramada pode dar quatro toneladas de uvas (3,3 toneladas no caso da casta Ramisco), enquanto numa vinha, mais a norte, na mesma região de Lisboa, podemos falar de valores acima de 15 toneladas por hectare.

Depois, o facto de as vinhas de Colares estarem em cima do mar faz que o viticultor tenha de estar sempre a controlar os ventos marinhos e as neblinas matinais, factores malvados que afectam a saúde das uvas. Há ainda o facto de os tintos de Ramisco exigirem tempo de estágio em garrafa (quando novos, têm uma rusticidade difícil de tolerar). Donde, tudo isto nos coloca perante uma viticultura heróica, praticada apenas por meia dúzia de produtores românticos.

Em consequência, a única forma de se obter alguma rentabilidade nestes projectos é pela via dos preços que se pedem por uma garrafa. Não há milagres. Mais, beber vinhos de Colares é – além de uma manifestação de bom gosto – sinónimo de defesa de um património vitícola único no mundo.

Nas últimas décadas, os vinhos de Colares tinham mais notoriedade no estrangeiro do que em Portugal. Recentemente, alguma literacia vínica, a restauração premium e o turismo estão a inverter este cenário. Seja como for, 60% da produção da Adega Viúva Gomes vai para exportação.

Bom indicador é, segundo José Baeta, o aumento do enoturismo na castiça adega que fica em Almoçageme, onde podemos perceber melhor o vinho de Colares, a sua história e, claro, comprar algumas garrafas. Quais? Bom, isso agora depende de diferentes factores, com destaque para os de carácter financeiro. Um branco colheita Viúva Gomes Malvasia de Colares 2022 custa 30 euros. Um Reserva Malvasia de Colares de 2021 custa 70 euros e um Ramisco de 2017 fica por 33,50. Mas, se quiserem perceber mesmo porque é que muita gente se encanta com Ramiscos velhos, neste caso será o Viúva Gomes 1969 (82 euros).

Se pegarmos nos extremos, temos que o Colheita Malvasia de Colares de 22 é um pingue-pongue entre notas florais, notas marinhas e notas de madeiras usadas, com a boca sempre salina e cheia de carácter. É um vinho que tanto pode beber-se hoje como daqui a 10 ou 15 anos. Quanto ao Ramisco de 1969, aqui estamos perante um clássico: notas de madeiras velhas, notas de fungos, notas vegetais, notas lácteas ligeiras e caruma e, claro, algum acético. Na boca, tudo pelo mesmo registo, com a adstringência e a acidez juntas. Não se trata de um vinho para iniciados. Para isso, o Malvasia de 22 é bem indicado; este Ramisco de 69 é um belo presente para um pai ou um avô que levam o vinho a sério.

Sugerir correcção
Ler 5 comentários