Gerald foi um dos piores do século, mas estava radiante

O nadador foi dos piores do século nos 200 metros mariposa e, em Paris, foi claramente o último. Mas mostrou ao PÚBLICO que também foi o primeiro, porque não é só de vitórias que se fala nos Jogos.

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Gerald Hernández em acção em Paris Clodagh Kilcoyne / REUTERS
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Nesta terça-feira, quando acabou os 200 metros mariposa, nos Jogos Olímpicos, Gerald Hernández, da Nicarágua, tinha todos os outros à sua espera. O primeiro classificado dessa série, e já era a pior série de todas, esperou quase dez segundos – pôde acabar a prova, virar-se, ver o seu tempo e assistir ao muito que ainda restava da prova de Hernández.

Na Arena La Défense, Hernández foi o último, bem último, mas também foi o primeiro, bem primeiro. Porque não é só de vitórias que se fala nos Jogos Olímpicos.

Na zona mista, após a prova, o sorriso do jovem de 20 anos chamou a atenção de todos e provocou, também ele, muitos sorrisos entre quem por ali trabalhava na organização. Ele tinha sido o pior nadador da prova – e um dos piores do século –, mas estava radiante. Sorridente, comunicativo e alegre. Confiante, até.

Antes de Hernández, tinham passado alguns nadadores sérios e cansados. Depois dele, passaram mais uns quantos. Mas este nicaraguense não. “Estou tão feliz... estar aqui é um sonho: o meu grande sonho. Nunca me vou esquecer disto. Foi uma experiência inesquecível. Pude começar a prova e nadar a par deles durante um bocado”, conta, em conversa com o PÚBLICO, referindo-se aos 15/20 metros em que pôde acompanhar os adversários.

“Eu já sabia que isto ia acontecer. Vir nadar os 200m mariposa era o mais difícil para mim. Eu começo sempre muito bem e acabo sempre muito mal. Era um risco vir nadar isto, mas estou muito feliz”, explicou.

Sentiu-se no Bernabéu

Vamos pôr os pontos nos is. Na natação, uma marca de 2,06 minutos nos 200 metros mariposa, em contexto olímpico, não é apenas fraca – é muito fraca. Prova disso é que, mesmo nessa série, reservada aos nadadores com piores marcas pessoais, Hernández foi, de longe, o pior, com 2m06.80s.

E na comparação com os Jogos anteriores não houve marca tão má em Tóquio (o pior fez 2m03s), Rio (2m01s), Londres (2m06,37s) ou Pequim (2m03s) – é preciso recuar a Atenas 2004 para ver um tempo tão modesto nesta prova.

Mas Hernández até fez a sua melhor marca de sempre. O melhor Hernández da história é dos piores nadadores olímpicos da história nesta distância.

Mas sejamos justos: este nadador não é daquela estirpe especial de atletas que fogem ao estereótipo ou que aparecem vindos não se sabe bem de onde, como Robel Habte ou Eric Moussambani – esses são cada vez mais raros.

A profissionalização dos atletas é mais global e fica mais difícil aparecerem “peixes fora de água” em ambiente olímpico. Hernández veste-se como nadador, mergulha como nadador, nada como nadador, tem corpo de nadador e fala como nadador. Só não nada tão depressa como os outros, mas isso, em Jogos Olímpicos, por vezes é um detalhe.

Hernández explicou mesmo que aquilo que sentiu em Paris foi diferente de tudo o que já tinha visto.

Na mariposa, os nadadores estão em permanente “entra e sai” da água. E Hernández achou graça a isso. “Foi giro sentir-me num estádio de futebol. Cada vez que saía da água ouvia o barulho das bancadas, pareciam loucos. Parecia que estava no Santiago Bernabéu”.

Quer uma medalha: qualquer uma

Gerald Hernández contou-nos a história que o trouxe aqui. Começou a nadar aos sete anos, quando o pai, farto de que ele não aprendesse a arte em família, o deixou num clube de natação. “Fez o que os pais fazem, que é forçar a criança a nadar. Deixou-me num clube, eu adorei e fiquei lá”, conta.

Apesar de já ter alguma expressão no contexto da natação da Nicarágua, Hernández ainda não é de primeira – ou segunda – água no panorama americano. Mas já se sente um modelo. “Sinto que já sou um modelo no meu país. As crianças já olham para mim e reconhecem-me como o nadador que querem seguir”.

E agora? Agora é levar qualquer coisa para casa – mas não de Paris. “O sonho agora é conquistar uma medalha para o meu país. Não tem de ser olímpica. Pode ser em provas da América Central, provas Pan-americanas... qualquer coisa”.

Por enquanto, diz que vai tentar lá chegar enquanto concilia a natação com os estudos de arquitectura. Diz que admira a força mental de Phelps, a velocidade de Dressel e o foco de Popovici – pelo menos de velocidade e foco vai poder aprender, caso fique por Paris mais uns dias.

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