O longo silêncio da advocacia na reforma da justiça

A justiça é o tema do momento. Impõe-se a todos, mas principalmente àqueles que actuam na sua defesa, que não deixem os predadores da democracia assumirem-se como seus guardiões.

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I. Considerando a reforma na justiça que se antecipa e analisando as posições dos dois principais partidos políticos, que ficou exposta no último debate parlamentar com a presença do Governo, torna-se imperativo discutir a participação dos advogados no processo.

É com essa perspectiva que entendo ser dever de todos os advogados participarem no debate, apesar do silêncio ensurdecedor da Ordem dos Advogados, que, mais uma vez, se abstém de discutir a questão, lançando propostas no âmbito legislativo, acantonando-se nas questões específicas da profissão.

É verdade que olhar para a justiça em perspectiva, para os problemas centrais da justiça portuguesa, passa por olharmos, também, para a advocacia sem tibieza e com coragem, considerando que sem uma advocacia forte, jamais a justiça cumprirá o seu desígnio.

Em 2024, as advogadas e os advogados precisam de ter assistência na saúde e na doença, com direito a baixas clínicas e comparticipação de despesas e medicamentos nas mesmíssimas condições de todas as profissões da área da justiça, assim como ver definida a sua situação na velhice.

Mais, as advogadas e advogados necessitam ver reconhecido o seu papel de exclusivos defensores das partes nos mais diferentes “processos”, vendo asseguradas condições materiais e formais de exercício condigno da profissão.

Cabe, assim, ao Estado reconhecer o papel fulcral e essencial que os advogados têm na defesa dos seus cidadãos, promovendo políticas públicas que garantam o exercício condigno da profissão.

Nesse quadro, actualização da tabela remuneratória do patrocínio oficioso torna-se absolutamente essencial: os advogados ao exercerem o patrocínio oficioso cumprem o dever constitucional do Estado de assegurar protecção jurídica a todos os cidadãos e o valor que o Estado paga de honorários aos advogados que defendem oficiosamente os demais cidadãos é absolutamente indigno.

Como temos afirmado, o Estado de Direito precisa de advogadas e advogados livres e autónomos, no pleno exercício do seu mandato, sem limites ou amarras que não as da Constituição.

Mas agora também é tempo de discutir problemas mais vastos, exigindo-se participação!

II. Isto porque a justiça é um dos temas que mais preocupam os portugueses, devendo ser debatido no âmbito das nossas instituições de representação democrática e no espírito de respeito pelo Estado de Direito, a que todos estamos vinculados, com calma, serenidade e sem sentimento de “claque”.

Desde logo porque, perdoem-me os comentadores que pululam no espaço mediático, os maiores problemas na área da Justiça estão “onde ninguém vê” e não onde os oráculos surgem com a voracidade dos dias que vivemos.

Resumir a justiça à grande “Causa Penal”, ao sangue e dinheiro oculto, no fundo, é limitar e passar por cima do trabalho que milhares, dezenas de milhares, diria, de servidores, nas mais diversas condições, nas mais diversas profissões, prestam diariamente no que se denominou chamar “justiça”.

Desde a mediação familiar, aos litígios de menores e laborais, aos processos na área cível, passando pelo tributário e administrativo, questões militares e rodoviárias, marítimas e aéreas, entre muitas outras, a “justiça” é um mundo que se estende para lá da espuma dos dias, merecendo uma análise que não pode ser superficial.

É certo, todos sabemos e está adquirido, que nos dias em que vivemos o espaço mediático é a grande câmara da República. Mas não é admissível que tal leve à persistência do erro.

III. É também por isto que a visão equilibrada e moderada que os advogados tiveram, ao longo da História, no processo legislativo, nas sucessivas reformas, não pode deixar de se impor nos tempos que vivemos.

Se os dias de hoje permitem e exigem, sem perda de garantias, processos mais simples, desmaterializados, com maior utilização dos meios disponíveis e melhor ocupação dos espaços físicos e virtuais, não aproveitar essa magnífica oportunidade para “encurtar o tempo do processo” seria um erro difícil de compreender.

Mas partir daí para a imposição de uma justiça que julgue depressa, rapidamente, sem garantias, porque, em breve, já o tempo (mediático…) é de outro processo, seria um erro ainda maior, que não teria solução em absoluto.

Pior, se permitirmos uma justiça que tem no Ministério Público o acusador e julgador, plenipotenciário, com a razão absoluta do processo, em que cada movimento acusatório é uma sentença, teremos uma justiça em que o contraditório é letra morta e, por isso, o acusado é julgado sem defesa possível - julgando-se sumariamente e ao arrepio do Estado de Direito.

A justiça é o tema do momento e ocupa parte da discussão do nosso dia-a-dia. Por isso, impõe-se a todos, mas principalmente àqueles que actuam na sua defesa, que não deixem os predadores da democracia assumirem-se como seus guardiões. Não só porque jamais o serão, mas, sobretudo, porque, no dia em que lhe deitarem a mão, instrumentalizá-la-ão em defesa do terror, da miséria e da tirania.

A nós, advogados, que não tememos o uso da palavra, cabe-nos, enfim, não deixar que o processo decorra na nossa ausência. Sob pena de perdermos, para sempre, o nosso tempo.

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