Bino não é o rei, é antes “o lobo dos mariscos” da Póvoa de Varzim

Aos 13 anos já “andava ao mar” e agora chega a receber 400 quilos de lavagante e mais de quatro toneladas de percebes num mês. É o poveiro que abastece restaurantes, bares e peixarias de mariscos.

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“Aqui o homem é acima de tudo pescador" ADRIANO MIRANDA
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Albino Pereira é já um dos raros poveiros genuínos, aqueles magistralmente retratados por Raul Brandão em Os Pescadores, obra ímpar escrita há cem anos. “Aqui o homem é acima de tudo pescador. Depende do mar e vive do mar: cria-se no barco e entranha-se no salitre.” “Um tipo com individualidade, como o soldado e o lavrador, são tipos criados à custa de acumulações seculares.” “É que em todas as terras à beira mar o homem acumula, lavrador e pescador ao mesmo tempo. O poveiro não, tem o seu areal e o mar” e “só tendo a morte quase certa é que o poveiro não vai ao mar”.

Como quase todos, Bino, é assim que todos os tratam, já não vai ao mar. Mas depende do mar, vive do mar e tem o salitre entranhado. Agora, o das carapaças dos crustáceos e dos mais delicados mariscos de que é um dos grandes guardiões na nossa costa. Lagostas, lagostins, lavagantes, percebes, ouriços, camarões, sapateiras ou navalheiras que fornece às carradas para todo o lado. “O ouriço vai quase todo para Espanha, são eles depois que vendem para Itália. Quem compra aqui são os da Galiza, que também vêm cá buscar muito percebe quando por lá escasseia”, explica o poveiro, que abastece restaurantes, bares e peixarias, sobretudo na região Norte.

É, por isso, conhecido como o rei dos mariscos, mas poveiro como é não aprecia a designação. “Põe aí antes lobo, o lobo da Póvoa. Ou antes, dos mariscos. Então não é assim que nos chamam? Não são é lobos do mar o que chamam aos do Varzim? É isso, põe lobo!”, resolve. Bino já não é também um daqueles “homenzarrões broncos e espessos” retratados por Raul Brandão, mas tal como eles conhece também melhor que nenhum outro pescador os meandros da sua profissão.

E se eles “sabiam a palmos o mar da Cartola que dá a pescada, o da Ferralha, que dá a raia, ou o da Gata, que dá raia e cação”, Bino explica quase como se fosse uma evidência que “é da Forcada da Póvoa, da Forcada das Caxinas, e também da Oliveira das Caxinas, que fica junto à Forcada, ou dos Cavalos de Fão, que vêm os melhores mariscos”. Também que “são as pedras antigas que dão os bons percebes e por isso deviam ser mais preservados”, e em vez de dois o defeso para a apanha de percebe devia ser nestas pedras de cinco meses. “Compensava-se no preço e preservava-se a espécie”, advoga, contando que antes era apenas um mês e que foram os pescadores a pedir o alargamento para dois (Setembro e Outubro), “mas nestas rochas o ideal era mesmo que fossem cinco meses”.

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É o poveiro que abastece restaurantes, bares e peixarias de mariscos. ADRIANO MIRANDA

Percebes, ouriços e camarão da costa é o que mais vende

Instalado no último dos armazéns do Porto de Pesca da Póvoa de Varzim, já onde os salpicos das ondas e a maresia invadem o interior, é onde vai guardando todos os mariscos até que levem o caminho dos clientes. “Chego a receber 400 quilos de lavagante, em regra quase não tem tempo de espera, mas quando é preciso fica aí na água”, diz, apontando para os onze tanques de que dispõe, com capacidade para cerca de duas toneladas. “Mas estão quase sempre vazios, aqui há uns 15 anos estavam sempre cheios, agora há pouca matéria”, lamenta-se.

Quando é que se vende mais? “É quando o cliente tem vontade de comer”, brinca, avançando que é normalmente por altura do Natal e fim de ano que o negócio toma maiores proporções. Sobretudo lagostas e lavagantes, que recebe da Irlanda, França e Espanha, ou as santolas e sapateiras e também camarão da costa. “A época do camarão abre em Outubro e vai até Março, mas agora começa a vir da Irlanda. É lindo, olha aqui!”, desafia, enquanto destapa pequenas caixas de esferovite de onde ressalta o brilho alaranjado dos camarões.

“Em Março já não há nada, agora é uma miséria. Dantes era uma farturinha, no ano de Entre-os-Rios [tragédia da queda da ponte, em Março de 2001] eram cestos de camarão, era às toneladas. Foi o ano do El Niño, muita chuva, o caudal dos rios trazia alimento pelo mar dentro, muita comedoria, o que vem dos rios é que alimenta o peixe.”

Já quanto ao que mais vende, Bino é peremptório: “Percebes e ouriço”, atira de imediato, avançando que “num mês bom”, aquele em que se pode apanhar peixe todos os 30 dias, chega a receber mais de quatro toneladas e percebes. “Trabalho normalmente com sete barcos, cada um pode recolher por dia o máximo de 20 quilos, enquanto no ouriço podem trazer até 50 quilos. O problema é que nem sempre há condições de mar, quando estão as marés vivas não se pode fazer nada”, diz, explicando que hoje se correm menos riscos e esta pode ser uma actividade rentável. “Agora vão nas pranchas de surf até às rochas e na baixa-mar conseguem apanhar muitos percebes e ouriços.”

"Nasceu pobre e fez-se à vida"

Como todos os poveiros do seu tempo, o que Bino guarda na memória é a vida do mar. “Na família, sempre todos andámos ao mar, o meu avô era pescador, o meu pai era pescador e também eu e todos os meus irmãos. Aos 13 anos já andava ao mar, e antes já só me lembro de fugir da escola para vir apanhar sardinha dos barcos e ir vender com as mulheres. Depois comecei a vender os sacos de plástico às peixeiras.”

É com indisfarçável orgulho que a filha, Ana, 23 anos, que é agora o seu braço direito no negócio, o interrompe. “Nasceu pobre e fez-se à vida”, atalha, para mostrar que os poveiros de agora já não cabem no retrato de Raul Brandão. E é com o mesmo orgulho que recorre a um recorte antigo do Jornal de Notícias com a fotografia do pai exibindo uma “sardinha gigante” que tinha pescado no mar da Póvoa.

Depois de “andar ao mar” que para os poveiros é embarcar nos barcos de pesca – desde os 13 anos, Bino iniciou-se no negócio dos mariscos ainda antes de atingir os 20, e não esconde também o orgulho quando explica que o filho Tiago (26 anos) é engenheiro informático e quebrou a tradição de andar ao mar.

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Aos 13 anos já “andava ao mar” ADRIANO MIRANDA

Além da filha, conta também com o apoio da mulher e de Bruno, o fiel colaborador, e queixa-se mas mais em jeito de regozijo que este é um trabalho contínuo, sem dias ou horas de descanso: “Mesmo na cama, quando estou a dormir, chega um barco à meia-noite ou duas da manhã, toca o telefone e é preciso vir descarregar. Só quando morrer é que vou ficar descansado.”

O importante, no entanto, é conquistar a confiança dos clientes. “E o Bino não engana! Olho para o marisco e sei ver se está bom, olho e vejo se a sapateira está cheia ou vazia, ando nisto há muitos anos. Os clientes vêm de todos os lados e sabem bem o que levam”, diz, enquanto o telefone não pára de tocar. Atende sempre com a mesma saudação calorosa: “Diz-me campeão!”

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