Queixam-se do Ministério Público? Então olhem para as CPI

Uma vez aprovada a CPI, ninguém quer deixar de revelar o seu vigor inquisitório. É indisfarçável o entusiasmo com que alguns deputados representam para as televisões.

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Há muito que os problemas que atribuímos à justiça não são exclusivos da justiça. A combinação entre acusações definitivas na praça pública, desprezo por direitos fundamentais e desrespeito pela privacidade tem muitos agentes ativos. Mesmo que, por absurdo, o Ministério Público se transformasse numa instituição exemplar, fiel às obrigações de reserva e com particular rigor na produção de prova, o ar não se tornaria mais respirável. Os incentivos estão todos alinhados para continuarmos alegremente uma caminhada rumo à degradação do espaço público.

Recordo isto ao ler uma notícia, perdida nas páginas interiores do Expresso, sintomática do rumo que levam hoje as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI). A pedido da CPI do caso das gémeas, o auditor jurídico do Parlamento, um procurador-geral adjunto, elaborou um parecer que defende o reforço de poderes dos inquéritos parlamentares, ao ponto de sustentar que o Parlamento pode obrigar os cidadãos a entregarem comunicações privadas, como mensagens escritas, whatsapps ou emails, sem envolvimento do Ministério Público nem a autorização de um juiz. Mais: de acordo com este parecer, as CPI podem requerer diretamente a operadores de telecomunicações, com caráter obrigatório, comunicações privadas de qualquer depoente, mesmo que nunca tenha exercido cargos públicos (jornalistas, fiquem alerta e o melhor é esquecerem a reserva das fontes).

O parecer não é vinculativo, mas não só não deixará de ser instrumentalizado politicamente como abre de facto campo à consolidação das CPI como espaço para uma justiça ligeira, televisionada e à boleia dos sentimentos populares. Pelo caminho, a garantia de que a autorização do acesso a comunicações privadas é reserva constitucional de um magistrado seria deitada para o caixote de lixo. Tudo o que não devia acontecer. Para já, alguns partidos resistirão, mas temo que, com o tempo, a parlamentarização da justiça ganhe tração.

Vale a pena refletir por que motivo as CPI passaram, num curto espaço de tempo, de instrumento de dignificação do Parlamento e relevantes para avaliações políticas de casos da justiça para paradigma da vulgaridade política e da erosão moral, com práticas desrespeitosas de direitos, liberdades e garantias. E por que motivo praticamente não passa uma semana sem que algum partido proponha mais uma CPI.

A reconfiguração partidária da Assembleia da República alterou a gramática parlamentar e a competição entre partidos levou a uma escalada irresistível, na qual quem se opõe a uma CPI é percecionado como estando em conluio com um qualquer interesse e a defender “poderosos”. Depois, uma vez aprovada a CPI, ninguém quer deixar de revelar o seu vigor inquisitório. É indisfarçável o entusiasmo com que alguns deputados representam para as televisões.

Ora este é um aspeto fundamental. Portugal é hoje, provavelmente, a democracia ocidental com o rácio mais elevado de canais noticiosos por habitante. Tornou-se difícil contabilizar o número de canais a emitir notícias 24 horas por dia, sem que se perceba a racionalidade económica, o propósito para o posicionamento das marcas e em que é que se pode diferenciar a oferta. Enquanto os operadores televisivos se envolvem numa luta fratricida, uma CPI por dia oferece horas de televisão gratuitas, que ocupam tempo de antena e alimentam uma mistura explosiva de ressentimento e voyeurismo social. Quem ganha com isto? Não é certamente a justiça, nem a dignidade das instituições políticas e, muito menos, um espaço público decente.

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