Espinho, a praia onde as artes se cruzam

O que resta da arte-xávega atraiu à praia de Espinho uma mulher de outra arte, com uma nova companha, a arrastar o tempo para terra.

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Pesca tradicional com arte xávega em Espinho Nelson Garrido
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Já não há bois a lavrar o mar em Espinho. E homens, quase se contam pelos dedos os que praticam a arte de arrastar a rede para terra. Na Praia dos Pescadores, um único barco, uma única companha mantém viva a “arte”. Daqui para norte, a costa é outra, e ninguém a pratica; e daqui para sul, a Xávega subsiste, mas vai-se tornando mais património do que economia, mais memória do que dia-a-dia.

O que resta desta faina em Espinho atraiu à praia uma mulher de outra arte. Foi ela, mais o Assobio, o Oub’lá, a do Moreno e outros mais quem me arrastou para ver esta pescaria arcaica.

Neste ritual, as bestas de carga deram lugar aos tractores, mas é o mar, ainda o mar, que continua a marcar o passo de quem o enfrenta.

São Pedro está de ressaca. Não veio trabalhar. As marcas da festa do pescador estão espalhadas pelas ruas de Espinho e o primeiro dia de Julho ainda está mais para bifanas e farturas do que para fartura de peixe. Tem sido assim, ultimamente. Se der para umas cervejas, há quem se dê por satisfeito,

A rede do Rita e Carolina tem trazido mais algas do que sardinha, mais lixo, dizem, do que cavala, biqueirão ou carapau. Os jaquinzinhos, meia dúzia de caixas, são o melhor que se aproveita do lanço da madrugada. O lanço da manhã, ainda está o resto da companha a prepará-lo, à minha frente. Já se verá se é melhor.

O mar ajuda. Está derretido, mais interessado em espelhar o céu do que em fazer a vida negra a quem só lhe pede um quinhão do que lá tem. O vento também faltou às ordens, o mandrião.

"Vais mijar-te?"

Não teve tanta sorte o Assobio, quando deu a primeira maré na faina. “Passar a rebentação das ondas, naquela alvorada, foi um suplício. O barco empinou de forma medonha.”

Li que os camaradas mais velhos se riram dele — “Vais mijar‑te?” Também Raul Brandão, noutro livro, viu muitos assim, por essas praias abaixo, há um século. Miúdos a fazerem-se homens no chicote da vaga; varinas a vida toda a rondar a sepultura.

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É à vista de todos, de joelhos na praia, que os pescadores exibem há séculos a sorte e o azar. É à vista de todos, num frenesim inútil, que o peixe exibe um último sopro de vida

O Assobio não está nesta companha. Nem ele, nem o Oub’lá, nem a do Moreno. Nem a Senhora da Fábrica, cuja história se confunde com a da imponente fábrica de conservas que é agora um museu, a conservar o tempo. Sem Molho de Espinho, cuja receita se perdeu algures neste caminho.

Foi Marta Pais Oliveira que os tirou a todos do mar, das ruas da cidade, das casas dos pescadores, daqueles pavilhões industriais que, até fecharem, abasteceram meio mundo. Foi ela que lhes deu um corpo e um nome, um rumo e uma praia, num livro que acaba de dar à costa. Faina é o segundo romance desta escritora cuja biografia, muito ligada a Espinho, a empurrou de novo para esta terra à beira-mar.

“A Senhora da Fábrica entrou.
Queria que me deixassem ir num barco. Posso pagar.
Quanto?
O Assobio tinha o cigarro no fim a queimar os lábios, insensíveis, enquanto enrolava outro.
O que quiser.
Se assim é, pode ir.
Quando?
Amanhã.
A que horas?
O mais velho riu-se.
Quando o mar chama.”

Há muito que ele chamava. Pela Senhora da Fábrica. Por Marta, que vejo afastar-se no horizonte, no meio de um mar luminoso, à saída do barco para o lanço desta manhã. Fico na praia a vê-la. Vai no sonho cumprido, finalmente, após madrugadas e madrugadas a tentar. Se der sorte, talvez a deixem embarcar outra vez.

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Fazia já algum tempo que a escritora Marta Pais Oliveira insistia para que a deixassem embarcar. Nesta manhã de Julho, conseguiu o que queria, a bordo do Rita e Carolina

José Barros, o dono do outro barco de mar, de nome Vamos Andando, assiste de terra ao baptismo daquela mulher de olhos claros e voz de menina, a quem tantas vezes recusou a viagem, quando ela lhe aparecia, de bloco de notas na mão, noite dentro, a fazer pesquisa para o livro. Ficaram amigos. Ele agora trabalha para o Rita e Carolina, a remendar o tempo que lhe sobra e a rede da companha, tarefa que mais ninguém quis, por aqui, aprender.

Aos 75 anos, já se sente uma peça de museu, como o seu barco. Pousado na rua, ao sol, em frente à Câmara de Espinho, há um ano que o Vamos Andando não vai a lado nenhum. Pode nunca ter levado mulher a bordo, mas em terra a história é outra, e quando a mulher adoeceu gravemente Zé Barros ficou sem rede. Ela é que lhe tratava de tudo, desde um parafuso à compra de um tractor, e da venda do peixe, principalmente. “Só não entrava no barco”, assume o marido. A mulher fintou a doença, mas não voltou àquela vida, deixando-o sem “contra-mestre”. Os filhos não querem a arte para nada.

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Num tempo em que a pesca se faz cada vez mais longe da vista, fainas de praia como esta aproximam-nos de quem vive do mar; aproximam-nos dessa água primordial de onde, um dia, a vida surgiu. Nelson Garrido
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Nesta cidade com tradição de jogo, a arte tem o seu quê de roleta. Leva-se a rede ao mar, mas quando os tractores a puxam para terra ninguém sabe o que ela traz de lá. nelson garrido

Com o Vamos Andando parado, é o Rita e Carolina que, quando o mar deixa, mantém viva a arte em Espinho. Adelino Ribeiro, um dos donos, anda pela praia, metido na mesma azáfama que a companha, de telefone ao ouvido, a dar conta do pecúlio a quem o queira comprar. Ganhou corpo nesta praia, e nesta praia, a metros do campo de golfe mais antigo do país, ele e outros rapazes da pesca apuraram o swing, fazendo buracos na areia, dobrando um ferro ou pegando num talo de couve, para taco.

Sei, por ele, que Severiano Ballesteros vendeu uma vaca para participar num torneio. Adelino, outrora um rapaz da pesca, faz o paralelo com aquele apontamento biográfico de um dos seus ídolos. Foi campeão nacional de amadores, correu mundo. Os filhos seguiram-lhe as pisadas…no desporto. Comprar o barco foi um desafio que este homem moreno aceitou há mais de duas décadas, e que vai manter enquanto puder. “Isto é a nossa identidade”, dirá o outro Moreno, o de Faina. “Sem isto não somos nós, esta arte de pescar somos nós.”

Havendo peixe...

E o que será esta gente, se um dia a arte acabar?, perguntei a Marta Pais Oliveira, numa esplanada apinhada, ao almoço. Ela, que vê na escrita um acto de resistência, uma urgência de preservação da memória, de oferecer, mesmo ficcionando, um vislumbre do que existe ou existiu aos que virão. Sem saudosismo.

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Adelino Ribeiro, um dos donos do "Rita e Carolina", anda pela praia, de telefone ao ouvido, a dar conta do pecúlio a quem o queira comprar. Nesta praia, a metros do campo de golfe mais antigo do país, ele e outros rapazes apuraram o swing. Adelino chegou a campeão nacional de amadores. Nelson Garrido

Nesta cidade com casino e tradição de jogo, a arte tem o seu quê de roleta. Leva-se a rede ao mar, mas quando os tractores a puxam para terra ninguém sabe o que ela traz de lá. É à vista de todos, de joelhos na praia, que os pescadores exibem há séculos a sorte e o azar. É à vista de todos, num frenesim inútil, que o peixe exibe um último sopro de vida.

O segundo lanço do dia foi pouco melhor do que o primeiro.

Marta não foi o amuleto de que os homens e mulheres da areia precisavam. Ainda assim, neste banquete para os olhos há sempre um quinhão para as gaivotas que perderam o medo à gente. Há sempre um quinhão para os curiosos que, à volta da companha, enchem um saco e levam para casa a próxima refeição. É desta partilha a melhor imagem que guardo.

Havendo peixe, todos têm alguma coisa a ganhar, nem que seja, no caso das crianças, uma lição sobre os perigos do peixe-aranha, a distinção entre uma sardinha e um carapau.

O fim da Xávega foi anunciado há muito por geógrafos, etnólogos, antropólogos e historiadores. O que ninguém sabe dizer é quando acabará. E, da Costa da Caparica a Espinho, o quanto tem vindo a ser adiado, por teimosia das comunidades.

Este modo de vida é património costeiro, e é provável que um dia destes lhe reconheçam a importância mundial que procura, e entre nas listas da UNESCO.

Por mais que nos pareça antiquada, a arte, como aqui lhe chamam, resiste como uma aula de campo de biologia marinha, como uma lição de história e de perseverança. E isso não é pouco. Num tempo em que a pesca se faz cada vez mais longe da vista, fainas de praia como esta aproximam-nos de quem vive do mar; aproximam-nos dessa água primordial de onde, um dia, a vida surgiu.

Do ventre do mar podemos tirar tudo o que quisermos.

Marta tira uma cadeira, uma grafonola, um homem, ainda vivo, uma voz. Arrasta para terra uma colecção de histórias de outros tempos, em que o comboio fazia de Espinho a estância de veraneio de ilustres figuras e Miguel de Unamuno se espantava com aqueles barcos de nariz empinado, puxados pelos bois.

Contudo, o oceano pede às vezes algo em troca. E diz-se, por aqui, que, por precaução, ao sair de casa um pescador deixa a alma atrás da porta. Eu, que não pesco, vou continuar a levá-la sem medo, até à beira do mar.

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