Castelo do Neiva: o milagre da multiplicação da esperança

Num país em que tantos fogem do mar, enche-me a alma ver que há quem insista em levar a vida pescando e se inspire no mergulho das aves para procurar uma maré benfazeja, quebrando vagas e tradições.

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NEG nelson garrido - 18 julho 2018 - PORTUGAL, Castelo do Neiva - Serie Aldeias de mar - aldeia piscatoria Castelo do Neiva - pescadores - barcos de pesca Nelson Garrido
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A sul da foz do rio Lima, no Norte de Portugal, Castelo do Neiva é uma daquelas praias à moda antiga, onde os pescadores ainda reclamam um canal para o mar, entre os guarda-sóis dos turistas. Regressei a este lugar, no Caminho de Santiago pela costa, atrás de uma espécie de milagre da multiplicação da esperança. Palavra que por aqui, descobri há uns anos, tem a forma de um barco e de algo ainda mais inesperado.

Num país em que tantos fogem do mar, enche-me a alma ver que há quem insista em levar a vida pescando; que há quem se inspire no mergulho das aves marinhas para procurar uma maré benfazeja, quebrando vagas e tradições. Mais ainda em comunidades como esta, desprovidas de um porto, onde o Atlântico, muitas vezes tocado pelo vento, nem sempre se mostra disposto a deixar sair a vintena de pequenas embarcações que aqui repousam.

No final de Maio, numa dessas manhãs em que o mar andava de poucas falas com os pescadores, um ou outro arriscou, e ainda vi o Berço de Jesus abicar à praia. Eu e o bando de gente que, atraída pela cena, e pelo cheiro a peixe, pousa diariamente em volta da lota e da rampa de varar os barcos. Junto a eles esperava Madalena Silva, aguardando um sinal para ligar o motor do guincho, aliviando o trabalho do marido, Manuel, e do filho Guilherme, que, areal acima, se limitaram, um de cada lado, a acompanhar a manjedoura até à Pedra Alta, em modo de descompressão.

O quadro parecia-me ter algo de sacra família, até reparar, no costado do Berço de Jesus, na mulher que ali pintaram, trazendo ao léu a anatomia do pecado original. Guilherme Silva já foi pintor. Não perdeu o jeito. Mas há 20 anos trocou os pincéis pelas linhas e anzóis, as obras pela companhia do pai, no mar. Com boas marés e alguns sacrifícios, este pescador de 38 anos ergueu uma casa — ainda antes de se casar, fez questão de me dizer —, na qual vive com a mulher e as duas filhas que tiveram entretanto. Tem uma máxima na ponta da língua: “O mar, quando dá, é preciso aproveitar.”

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Castelo do Neiva é uma daquelas praias à moda antiga, onde os pescadores ainda reclamam um canal para o mar, entre os guarda-sóis dos turistas

Mas o mar nem sempre dá. E às vezes, tira. E quem espera, espera de coração nas mãos. Uns dias antes, o Coração de Jesus ia soçobrando ali mesmo, à vista de Madalena e dos outros, sem que lhe pudessem deitar a mão. Com o choque da vaga, o próprio barco enjoou, vomitando. “Até o peixe que vinha dentro saltou para fora”, descreveu-me Rogério Barros, ex-emigrante que retornou à praia da infância, onde gasta o tempo à conversa.

Vagas e vento nuns dias, noutros o sargaço, “serras de sargaço”, que agora não tem sargaceira que o apanhe ou agricultor que o leve. São muitas as marés perdidas por aqui. Uma dezena de embarcações já deixou esta praia, e faz porto a partir de um aterro na margem sul do Lima, no Cabedelo, onde o rio, mais calmo, lhes facilita a saída e entrada. Os Silvas estão cansados, também. “Isto aqui é um matadouro, e o meu filho quer ir para Viana”, justifica-se Madalena, nada arrependida com a opção.

Em Darque, com Santa Luzia à vista a alumiar-lhes a fé, contei 11 barcos, à espera de uma madrugada bonançosa. À frente deles, na outra margem, está o antigo navio-hospital Gil Eannes, museu das campanhas do bacalhau. Exímios no manejo do trole de linhas e anzóis, durante o Estado Novo, mais de 200 homens de Castelo do Neiva embarcaram para a faina maior, fugindo, durante meio ano, daquela praia de incertezas, para uma vida não menos arriscada.

A grande pesca, para nós, quase que acabou. Outros a vão fazendo, rapando o fundo do mar, sem que ninguém os trave. É verdade que o tempo não chegou a dar razão a Raul Brandão, que escrevia, já em 1923, em Os Pescadores, que em 50 anos não haveria “uma escama nas fertilíssimas águas portuguesas”. Mas a economia global em que nos enredamos desdenha a pequena pesca e desvaloriza o lastro de sustentabilidade que mantém em equilíbrio comunidades costeiras como esta.

Falta coragem para acabar com o arrasto de fundo, e para dar prioridade às pescarias artesanais, como ainda este mês defendia a Fundação Oceano Azul, numa conferência da ONU. E, assim, em Castelo do Neiva e noutros portinhos, este modo de vida é já uma história de resistência. Parte da frota de pequenos barcos até foi renovada, mas andam dos 40 anos para cima os que saem para o mar. São quase todos familiares, pais e filhos, irmãos ou primos. E nasceram quase todos por aqui.

“Se a Zeza vai, tu também consegues!”

“De fora, não vem ninguém”. Quem o diz é Maria José Neto, mulher, mãe, co-fundadora e presidente da associação de armadores da pesca local, auto-excluindo-se destas contas, apesar de ser, também ela, pescadora e de ter nascido em Belinho, Esposende, poucos quilómetros a sul desta praia.

Zeza já leva quase 20 anos a pescar. Começou a trabalhar com o marido, José Henrique Neto, no Esperança, em 2005, depois de anos como operária na fábrica de redes onde se conheceram. E tudo por causa de uma bendita noite em que, ao experimentar uma saída ao mar com o sogro, ganhou, em corvinas, o que lhe pagavam num mês. “Se é assim, é isto que quero fazer”, contava, numa reportagem do P2, em 2018.

Claro que não é sempre assim. Mas o facto é que Maria José e José Henrique equilibraram as suas vidas graças à parceria que estabeleceram. O mar que às vezes lhes impede a saída é generoso o suficiente para os ajudar a educar os filhos, a manter a casa, ao pé da praia, e a pagar umas férias fora daqui, todos os anos. Algo impensável nos seus tempos na fábrica.

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Maria José Neto (Zeza), uma das poucas mulheres pescadoras de Castelo de Neiva

A opção de Zeza foi maré viva, espalhando-se pela praia. No final de 2018, outras duas mulheres seguiram-lhe o exemplo. Cecília Abreu, também de Esposende, antiga tecedeira de tapetes, é camarada do marido, Ricardo Carneiro, no Tita; Marlene Sá, filha de um pescador local, começou a trabalhar com outros, e depois com o pai, antes de comprar o Santo Amaro, e se tornar arrais do seu barco. Trabalham, ambas, a partir do rio, no Cabedelo.

Mãe de dois filhos com problemas de saúde, Cecília não conseguia manter um emprego regular, dada a necessidade de os acompanhar a consultas e à fisioterapia, e acabou por encontrar no mar uma saída. “Se a Zeza vai, tu também consegues!”, reagiu o marido, depois de um primeiro estranhamento, quando ela pensou alto nessa possibilidade. Se não pescam num dia, vão no outro, ao fim-de-semana, se for preciso. Se, de madrugada, o vento lhes parecer irritado, dormem mais uma hora, à espera que acalme. Flexibilidade difícil de pedir a um camarada com a sua própria vida familiar.

As dificuldades de Marlene foram outras. Inspirada por um tio pescador, cuja morte lhe comove a voz, herdou-lhe o gosto pelo mar, mas teve de contrariar o machismo reinante. Quando decidiu avançar sozinha, e contratou um homem pacato já com 60 anos, antigo camarada do pai, outros homens perguntavam ao sr. José “se ela sabia pescar alguma coisa”.

No mar, chegaram a estragar-lhe aparelhos, na competição pelos pesqueiros. Passou “tempos muito difíceis, no início”, mas noto-a senhora de si, sem nada a provar a ninguém. Conta com Paulo, o marido, que não gosta do mar, mas, em terra, para lá do seu emprego numa fábrica, a espera e apoia — apoia as três — no que for preciso. E conta com o orgulho da filha, que até já tirou a cédula e a acompanhou uma ou outra vez ao mar.

Sair da casca

No riso fácil com que desfiam a sua história, Zeza, Cecília e Marlene mostram estar em paz com o abraço que deram ao mar, mas, como noutras comunidades, nenhuma das três quer a descendência a seguir-lhes as pisadas. Contudo, lá na praia onde o encontrei, Rogério Barros não se espantaria se outras raparigas saíssem da casca, ou do casco onde as pintam, e se fizessem ao mar. “Se não for assim, isto acaba”, sentencia.

Não sei se será assim, mas hoje, que o oceano deixou de ser um refúgio de monstros marinhos, de leviatãs e adamastores a pedir toda a sorte de bênçãos e amuletos, faz pouco sentido que, por uma superstição, ou outro qualquer motivo, as únicas mulheres a bordo ainda sejam apenas as nossas senhoras dos altares, amarrando as de carne e osso ao cais da saudade, ou atirando-as para a clandestinidade.

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Zeza vai ao mar há mais de 20 anos
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Em Castelo do Neiva e noutros portinhos, a pesca artesanal é já uma história de resistência

Na nossa costa há mais mulheres na pesca do que imaginamos, mulheres que recusam ficar à espera, e que multiplicam, a cada lanço, a esperança que Marlene, Cecília e Zeza espraiam nas suas vozes. Marlene conhece mais duas, em Viana. Eu recordo-me de Maria de Lourdes Baptista, em São Miguel, e de Fátima Garcia, no Faial, mulheres-pescadoras no meio do Atlântico; e ainda de Sandra Lázaro, uma das várias guardiãs do Sado, que conheci em Setúbal.

Lembro-me também da mãe de um amigo de infância, Maria do Alívio, personagem da primeira reportagem que me publicaram há 25 anos, bem como da minha vizinha Maria Balé, entretanto reformada, que aos 40 foi fazer o exame da 4.ª classe, para tirar a cédula e acompanhar o marido. E, nas Caxinas, onde nascemos eu e elas, são conhecidas as histórias da tia Antónia Balé. Teve carta de arrais, nos anos 1930, a viúva de Josué Coentrão, um tio-bisavô que morreu longe, nos mares do fim do mundo.

Apartadas dos maridos pelo bacalhau e pela emigração, as mulheres da praia de Vila Chã, outra comunidade de Vila do Conde, atiravam-se para o mar. Em pleno Estado Novo, quase duas dezenas delas foram arrais dos seus barcos, mestras das suas vidas. Imortalizou-as Gonçalo Tocha, no sublime documentário A Mãe e o Mar (2013). Um título fecundo, que, olhando para o passado, nos desafia a repensar o futuro. Com esperança.

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