Justiça, para que te queremos?
O empenho legislativo recente no que concerne à prevenção da corrupção, nomeadamente económica, terá de se traduzir numa resposta à perceção que estes fenómenos provocam na sociedade.
Os acontecimentos do dia 7 de novembro de 2023 tiveram um profundo impacto político e institucional, a nível nacional e internacional. Numa tempestade perfeita entre política e justiça, um Governo de maioria absoluta caiu. Poucas semanas depois, a Região Autónoma da Madeira passava por um cenário semelhante. E assim ressurgiram fantasmas sobre a transparência e a qualidade da justiça em Portugal. Resultará deste exercício um conjunto de medidas a pensar em Outubro ou teremos uma verdadeira reforma da justiça em Portugal?
O país deverá conhecer nesta quinta-feira as propostas do Governo para combater a corrupção, uma promessa que Luís Montenegro assumiu na última campanha eleitoral. Como resultado de reuniões entre a ministra da Justiça e representantes dos vários partidos políticos com assento parlamentar, além das medidas propostas pelo Governo, é expectável que o pacote inclua medidas sugeridas pelos partidos da oposição. A confirmar-se, este será um bom prenúncio, até porque a justiça nunca se construiu de forma unilateral.
O timing da legislação não poderia ser mais oportuno. À data de publicação deste pacote legislativo, Portugal depara-se e debate publicamente vários casos de corrupção com reverberância nos planos regional, nacional e europeu. A Operação Influencer, que marcou o contexto político nacional ao longo dos últimos meses, tem tido ecos no processo de eventual escolha do ex-primeiro-ministro António Costa para o cargo de Presidente do Conselho Europeu. O futuro do recém-nomeado Governo Regional da Madeira é igualmente incerto, com vários partidos políticos a registarem reservas quanto à manutenção de Miguel Albuquerque enquanto Presidente do Governo Regional, em consequência do processo em que foi visado. Ao mesmo tempo, decorre a investigação — parlamentar e judicial — à disponibilização do fármaco Zolgensma a duas gémeas luso-brasileiras, um caso que coloca sob escrutínio, senão sob dúvida, várias instituições e titulares de cargos públicos.
Mas estes não são acontecimentos isolados ou apenas recentes na política portuguesa. De Paulo Pedroso a Rui Rio, de Paulo Portas a António Costa, durante décadas assistimos a um processo gradual de politização da justiça, a que institucionalmente fomos respondendo com “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política”.
Independentemente do desfecho judicial destes e de vários outros casos, é notório que o avolumar de processos e a sua discussão colocam entraves à confiança dos portugueses não apenas no poder político, mas também quanto ao poder judicial.
O relatório Citizens' attitudes towards corruption in the EU, promovido pelo Eurobarómetro, é revelador da percepção que os portugueses têm sobre a disseminação da corrupção em Portugal. Em 2023, 93% dos portugueses considerava que a corrupção é um fenómeno estabelecido em Portugal, colocando o país em terceiro na lista de países com maior percepção de corrupção a nível europeu e 23 pontos percentuais acima da média da UE.
Num momento em que a Europa vive um processo de transformação social e político profundo, a que Portugal não será alheio, importa dar passos sólidos no sentido da credibilização das instituições, das políticas públicas e dos seus agentes. Esse caminho implica, necessariamente, a garantia de independência da própria justiça e o respeito e cumprimento da lei vigente, desde logo o respeito pela privacidade e a garantia do segredo de justiça por todos os atores do sistema de justiça e aqueles com quem estes interagem.
O empenho legislativo recente no que concerne à prevenção da corrupção, nomeadamente económica, terá de se traduzir numa resposta à perceção que estes fenómenos provocam na sociedade, bem como às transformações que nela promovem.
Este pacote legislativo apresentado pelo Governo não é certamente uma panaceia. Pode, ainda assim, servir de tónico a um re-energizar da discussão e da relação entre eleitores e eleitos e contribuir para credibilizar a justiça, dignificar a atividade política e, em última análise, reforçar a qualidade da nossa democracia. A justiça tem de ser um desígnio coletivo, o que exige diálogo, compromisso e entendimento. Mas também urgência. Tenhamos, por isso, a lucidez de não perder mais tempo.