Flexibilizar a Lei de Solos: uma colossal mentira!
Não há falta de solo urbano com capacidade edificatória para acolher medidas de política pública que visem garantir o direito constitucional à habitação.
Sim, é uma colossal mentira! Contrariamente à narrativa apadrinhada por toda a direita e assumida pelo Programa de Governo do PSD/CDS, vertida agora na nova estratégia Construir Portugal, não há, como questão nacional, falta de solo urbano com capacidade edificatória para acolher medidas de política pública por forma a garantir o direito constitucional à habitação. Por outro lado, não há qualquer impedimento legal de, em casos pontuais em que tal possa ser verdade, se proceder ao alargamento dos perímetros urbanos, no respeito pela lei, para acolher necessidades edificatórias, sendo, assim, uma outra mentira a afirmação da impossibilidade de expansão urbana no quadro do normativo do planeamento urbano em vigor.
Mas, sendo oportuno denunciar a mentira formulada ao sabor de interesses imobiliários, é também importante ir ao fundamental da questão na perspetiva da defesa das políticas públicas de ordenamento das cidades.
Não pode ser assim! Um ministro (ou um governo) não tem o poder, nem o direito, apenas porque quer, sem qualquer sustentação técnica, contrariamente ao conhecimento dos serviços públicos responsáveis pela matéria e do vasto conhecimento técnico das múltiplas equipas com trabalho de terreno, de avançar com uma iniciativa legislativa que viola elementos principiais de uma lei de bases, a Lei de Bases da Politica Pública de Solos e de Ordenamento do Território e de Urbanismo. E que entra em violenta rota de colisão com determinações estratégicas e programáticas de um superior instrumento de planeamento territorial em vigor o qual, vinculando todas as entidades públicas (nomeadamente o Governo), estabelece as opções fundamentais de política no domínio do ordenamento do território e urbanismo – isto é, o Programa Nacional de Políticas de Ordenamento do Território (PNPOT).
É isto que está em cima da mesa com a insuportável (porque, de facto, nenhuma evidência a suporta) proposta de “flexibilização da lei de solos”: a violação, pela mão do Governo, de determinações de políticas públicas inscritas em instrumentos nucleares de planeamento e ordenamento do território. Trata-se, pois, de mais um rombo na credibilidade da política de ordenamento do território e dos instrumentos de gestão territorial e a revelação de que o ordenamento do território tem sido, contra preceitos constitucionais, uma variável de ajustamento das opções do neoliberalismo económico e social em Portugal. Um péssimo exemplo que fragiliza a política pública e que tanto satisfaz todos aqueles que não querem que as políticas de solos, de urbanismo e de ordenamento do território façam parte da caixa de ferramentas para a construção de um país social e territorialmente justo.
A paisagem urbana desqualificada das zonas de densa urbanização, a brutal ineficiência funcional dos territórios edificados na faixa litoral e nas áreas metropolitanas ao que se somam os problemas ambientais resultantes de uma edificação vocacionada à extração da maior mais-valia fundiária, impuseram na agenda das políticas urbanas e de ordenamento do território a questão central da contenção urbana e da promoção de um urbanismo desenvolvido sob princípios de sustentabilidade ambiental e de justiça social.
A Lei de Bases (LB) em vigor, fruto de décadas de evolução incremental do quadro normativo no domínio do urbanismo e do ordenamento do território, acolheu, na sua revisão de 2014, a integração da questão “uso eficiente do solo” nos seus elementos principiais e no quadro das finalidades de política pública.
Para além da valorização das “potencialidades do solo, salvaguardando a sua qualidade e a realização das suas funções ambientais, económicas, sociais em culturais”, integra o conjunto de fins da política de solos, de ordenamento do território e de urbanismo o “aproveitamento racional e eficiente do solo, enquanto recurso natural escasso” (LB, art.º 2). A questão é ainda enquadrada na definição do princípio de “economia e eficiência” que estabelece “a utilização racional e eficiente dos recursos naturais e culturais, bem como a sustentabilidade ambiental e financeira das opções inscritas nos programas e planos territoriais” (LB, art.º 3).
O uso eficiente do solo e, nesta perspetiva, a contenção das áreas urbanas, constitui hoje um dos pilares e dos desafios fundamentais das agendas urbanas e de ordenamento do território a nível nacional e local, apresentando esta questão uma forte dimensão europeia no contexto de compromissos internacionais (Net Zero Land Take). E tal assim é que a questão da utilização racional e eficiente do solo foi assumida como um dos novos elementos estruturantes da política nacional de urbanismo acolhida no novo PNPOT (2019), quer ao nível estratégico, quer ao nível programático. Um dos “Dez Compromissos para o Território” estabelecidos pelo programa nacional – compromisso 10: Reforçar a eficiência territorial nos IGT (Instrumentos de Gestão Territorial) – estabelece “travar a artificialização do solo e promover a reutilização do solo enquanto suporte das atividades humanas edificadas”; para tal, sublinha-se ainda neste compromisso, deve-se “promover a concentração da habitação e das atividades, pela reabilitação e regeneração urbanas…”.
Já na sua componente programática, na Medida 1.2 do plano de ação, “Valorizar o recurso solo e combater o seu desperdício”, afirma-se: “do ponto de vista operacional, a concretização desta medida passa por: i) conter as áreas destinadas a urbanização ou edificação fora das áreas urbanas existentes, pela colmatação de vazios urbanos e ocupação de solos expectantes, pelo aproveitamento de solos ocupados por urbanização e edificação incompleta e abandonada…”. Também na Medida 1.9 – “Promover a reabilitação urbana, qualificar o ambiente urbano e o espaço público” é determinado que “a contenção urbana é e deve ser uma prática comum para a gestão do desenvolvimento urbano sustentável focado no uso eficiente do solo e na preservação dos serviços dos ecossistemas”.
É, pois, todo este edifício programático e estratégico de políticas públicas de solos e de urbanismo, edifício que, insiste-se, vincula toda a administração pública, é este edifício que é sujeito a um inusitado e violento teste de resistência com a apresentação da proposta do Governo do PSD/CDS com vista à “flexibilização da lei de solos”. Trata-se, sim, de uma questão de defesa da lei. Mas o que é estruturalmente relevante naquilo que está em cima da mesa, é a abertura de portas à construção de uma cidade de apartheid territorial expulsando as populações mais vulneráveis para as periferias cada vez mais distantes porque, segundo a opinião expressa do Ministro das Infraestruturas e da Habitação, “o problema da habitação não tem de se resolver no centro [da cidade]” e é “normal” os processos de expulsão das famílias por via das dinâmicas especulativas do mercado imobiliário.
A proposta do Governo deve ter como contraproposta a defesa de uma forma alternativa e justa de construir a cidade, de assegurar o direito constitucional a uma habitação digna e acessível, o que requer a implementação de políticas de solos e de desenvolvimento urbano determinadas pelo interesse público e pela justiça social.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico