Plano de Emergência da Saúde – equívocos e erros nas propostas sobre Urgência

O problema e caos da urgência não está na urgência, está no antes e depois! Portugal é o país da OCDE com maior número de episódios de urgência, cerca de 70 episódios/100 habitantes por ano.

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No dia 8 maio pelas 12h45m, a Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI) recebeu um convite do Gabinete da Ministra da Saúde, para participar numa sessão de trabalho sobre o Plano de Emergência da Saúde. As regras eram claras: a reunião seria no dia 10 maio, pelas 16h, e teríamos 5 minutos para dar o nosso contributo.

Apesar das grandes limitações, assim fizemos. Em 5 minutos expusemos os 4 pontos que consideramos essenciais resolver:

1. Baixa eficiência dos serviços hospitalares e necessidade de alterar o modelo de organização para um trabalho eficiente e com avaliação de resultados na melhoria da saúde dos doentes;

2. Falta de especialistas de Medicina Interna e baixa atratividade na escolha dos novos médicos para esta especialidade (250 vagas não preenchidas nos últimos dois anos), fulcral no funcionamento hospitalar;

3. Resolução dos casos sociais e internamentos indevidos que impedem o funcionamento dos serviços hospitalares (2164 camas ocupadas indevidamente);

4. Excesso de afluência aos serviços de urgência (SU) de situações não urgentes (mais de 40%) que coloca em risco a avaliação de doentes graves e emergentes e incapacidade de escoar os doentes com decisão clínica efetivada por falta de vagas no internamento hospitalar.

No dia 29 de maio foi publicado o plano de emergência que, no nosso entender e sobre os temas expostos, confirmou a precipitação, incongruência e pró-forma de todo este processo.

Destaco as seguintes afirmações para depois as aprofundar:

-Página 94: identificação que mais de 40% dos doentes que recorrem aos SU são situações não urgentes que colocam em risco o tratamento dos doentes urgentes e emergentes e que a resolução do caos da urgência necessita de alterações do circuito a montante e jusante;

-Página 98: criação de alternativas a atendimento não urgentes para “Centro de Atendimento Clínico”, consultas na Medicina Geral e Familiar ou consultas abertas nos hospitais;

-Página 105: identificação dos 2164 doentes que ocupam camas hospitalares indevidamente, após alta clínica, com descrição de possíveis contratos com entidades sociais e particulares para transferência destes doentes e ainda de aumento oferta da hospitalização domiciliária;

-Página 109: criação da especialidade de Urgência para permitir a especialização/formação médica de qualidade aos doentes urgentes e emergentes, alocar especialistas (retirar não-especialistas/tarefeiros) para garantir a presença e coordenação médica firme em todo o sistema, reduzindo o risco de substituição de médicos por outras classes profissionais, reduzir a necessidade de transferência inter-hospitalar, permitir o sentido de pertença ao serviço de urgência, permitir a criação de uma carreira com médicos mais motivados e permitir a investigação. Afirma ainda, no cronograma da página 111, que, caso a especialidade não seja aceite na Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos, será criada pela Assembleia da República;

-Página 125: Criação do Departamento de Urgência-Emergência na Direção Executiva do SNS para melhorar a coordenação, eficiência, rede de referenciação por especialidade, planeamento estratégico, avaliação e comunicação.

O grupo que se dedicou a este assunto identifica corretamente que o principal problema é o recurso indevido de situações agudas não graves aos serviços de urgência bem como a incapacidade de drenagem dos doentes com indicação de internamento por falta de vaga nos serviços. Isto é, problemas a jusante e montante. Mas esquece a conclusão óbvia: o problema e caos da urgência não está na urgência, está no antes e depois! Por isso mesmo é muito difícil fazer comparações com outros serviços de urgência na Europa e Mundo quando Portugal é o país da OCDE com maior número de episódios de urgência, cerca de 70 episódios/100 habitantes por ano, quando o segundo é a Espanha com metade deste número. Ainda para perceber melhor este erro, bastará ver a classificação dos mesmos países sobre o acesso a uma consulta aberta no espaço de três dias. Aqui o gráfico é em espelho, isto é, Portugal está em último lugar e quem está em primeiro lugar para responder a uma consulta aberta é quem tem menos episódios de urgência!

Sobre as alternativas de acesso aos cuidados de saúde (esse é o problema!), serão todas bem-vindas, mas falta explicar como vão ter médicos para os tais “centros de atendimento clínicos” que são um novo nome para os antigos SAP (serviços de atendimento permanente)!

Mais, esquecem se de todas as tentativas de reencaminhar estes doentes para consultas nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) falharam redondamente, não por falta de vagas nos CSP mas por recusa desses mesmos doentes! Pior, chegam a sugerir que uma das opções para retirar doentes com alta clinica/casos sociais é através da otimização da hospitalização domiciliária quando o problema é exatamente a recusa do doente e família de o levar para casa e não a possibilidade de as equipas de Medicina Interna ou Medicina Geral e Familiar o tratarem em casa, pois esses doentes não precisam de cuidados médicos, precisam de apoio social ou de enfermagem!

Para terminar, concluem o que não se pode concluir: a resposta é a criação de uma especialidade de Urgência! É certo que a criação de uma especialidade até pode melhorar a gestão de recursos humanos no sentido que é mais fácil gerir uma equipa a tempo inteiro de 40 médicos do que uma equipa de 100 médicos a tempo parcial e alguns desses médicos também se podem sentir mais incluídos nesse serviço, ter a perspetiva de uma carreira e formação. Contudo, a experiência de uma década com equipas dedicadas, com perspetiva de carreira, incluindo a de um hospital central, que era totalmente autónoma, falhou por exaustação e ineficácia!

A criação de uma especialidade médica sempre foi pelo melhor interesse do doente, por haver um conjunto de conhecimentos que necessita dessa especialização. Aqui o interesse é única e exclusivamente destes médicos e do gestor, não do doente! De tal maneira é um interesse particular que fazem questão de deixar escrito que a especialidade reduz o risco de substituição de médicos por outros profissionais. Ora, qualquer bom gestor dirá o oposto: devemos substituir todas as funções menos diferenciadas por alguém que o faça de forma mais pragmática e com menos custos, melhorando eficácia e produtividade de ambos os profissionais, médicos e não médicos.

Mais, não há e nunca haverá uma única especialidade capaz de resolver tudo! Nunca haverá alguém que esteja bem preparado para identificar e resolver síndromes gripais, lombalgias e gastroenterites, tratar um edema agudo do pulmão, cetoacidose diabética, sépsis e choque, fazer um cateterismo coronário, fibrinólise num AVC, operar uma apendicite, colecistite ou ainda operar um fémur partido! Ah, e ainda estar bem familiarizado com tudo isto, mas em idade pediátrica!

Criar uma especialidade para fazer formação aos médicos sem especialidade? Excessivo por um lado e totalmente deficitário por outro. Excessivo porque é possível fazer formação sem criar uma especialidade. Basta fazer uma pesquisa no site da SPMI ou da APMGF para identificar os vários cursos e formações disponíveis. Deficitário porque não há programa de formação capaz de preparar um único médico para identificar sinais de alarme, considerar todos diagnósticos diferenciais e conhecer os vários exames complementares indicados para resolver a questão urgente. Para isso é preciso conhecer todo o espectro de sintomas e sinais, das doenças mais simples às mais complexas e não o oposto, num serviço em que o médico tem contacto com esse doente uma única vez! O serviço de urgência será sempre multidisciplinar e não de uma única especialidade.

Últimas palavras para a senhora ministra a quem todos reconhecem competência e conhecimento dos problemas do SNS e o particular reconhecimento dos especialistas de Medicina Interna e seu papel fundamental no funcionamento hospitalar. Foram essas as palavras que ouvimos no seu discurso, no dia 23/5, na sessão de abertura do 30.º Congresso Nacional de Medicina Interna. Todos os médicos, em particular os internistas, estão interessados e disponíveis para a ajudar a resolver o problema das urgências. Para um plano de emergência haverá lugar a medidas a curto prazo, como o reencaminhamento das situações não urgentes para os CSP, telemedicina, consultas abertas, intervenção de enfermeiros ou farmacêuticos na sensibilização e melhoria da literacia dos doentes, transferência de doentes com alta clínica para camas da rede social ou privada ou o reforço das equipas de urgência com médicos de todas as outras especialidades hospitalares. A longo prazo, melhoria dos sistemas informáticos, redefinição dos modelos de organização hospitalar e dos CSP que promovam melhor eficácia, produtividade e melhores resultados na saúde dos doentes. Só assim teremos a capacidade de avaliar cada doente no local certo pelo médico certo e não numa urgência em que há uma desconfiança de parte a parte.

Seja o que for, estamos disponíveis para trabalhar com a ministra da Saúde mas sem a chantagem de criar uma especialidade de urgência na Assembleia da República se ela for, novamente, chumbada no órgão próprio da Ordem dos Médicos, a Assembleia de Representantes, como aconteceu por larga maioria em dezembro de 2022. Aproveite esta força motriz dos hospitais e SNS que é a Medicina Interna e, acredite, conseguirá uma verdadeira mudança em benefício dos doentes e não de um grupo de médicos e gestores afastados da realidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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