Pais “podem e devem” dar beijos aos bebés para evitar que sejam adultos ansiosos

O afecto é uma das principais formas de vinculação entre o recém-nascido e os pais. Contudo, há que ter alguns cuidados nos beijos, evitando a transmissão de infecções e vírus.

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Nos pés dos bebés os beijos são à discrição Manuel Roberto
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Foi ainda na maternidade que Margarida, vendedora e mãe havia dois meses, ouviu a recomendação “nada de beijinhos no primeiro mês” e levou-a muito a sério. Joana, enfermeira de neonatologia, também decidiu evitar a exposição do filho recém-nascido. Porquê? Porque um beijo pode ser o principal meio de contágio de vírus ou infecções respiratórias e é preciso proteger a criança. Contudo, a ciência diz que os beijos ajudam um bebé a identificar quem são as suas relações mais próximas. Por isso, as regras são para serem seguidas, mas com bom senso, apelam os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO. Afinal, o afecto é a principal forma de vinculação entre pais e filhos e cria ferramentas importantes para o futuro. Neste sábado, 1 de Junho, assinala-se o Dia Mundial da Criança.

Depois de vários anos de experiência com bebés “bastante doentes”, quando chegou a sua vez de abraçar a maternidade, Joana Espírito Santo decidiu evitar a exposição do pequeno Vasco aos beijos. “Acho muito difícil os pais evitarem dar beijinhos, até porque o afecto é importante e se sobrepõe ao risco da exposição a doenças, mas, ao nível das pessoas de fora, sou apologista de que se deve evitar”, declara ao PÚBLICO.

Não que proíba os avós de darem carinhos ao bebé, mas pede que, depois de uma correcta higiene, os beijinhos se restrinjam a zonas de menor contacto com a via aérea, como os pés, a barriga ou a nuca. “Todos os bebés nascem sem qualquer tipo de defesas e vão-nas adquirindo através do leite materno e da exposição a agentes. Mas se pudermos impedir a exposição a agentes patológicos durante seis meses, acho que o devemos fazer”, opina a enfermeira.

O pediatra Hugo Rodrigues tem uma opinião diferente: “Muitas das bactérias que habitam na boca dos pais fazem parte da microbiota normal e os bebés vão acabar por as ganhar. Não podemos ser demasiado fundamentalistas.” O autor da página Pediatria para Todos é flexível neste tópico, mas concorda que se evite este tipo de contacto por parte de muitas pessoas. “Os pais podem e devem dar beijinhos aos bebés. Sempre se deu beijos aos bebés, é uma manifestação genuína de afectos.”

Marta Ezequiel, pediatra no Centro do Bebé, em Lisboa, é da mesma opinião, mas alerta para alguns perigos, não só na transmissão de infecções respiratórias através de gotículas, mas também a transmissão de herpes aos recém-nascidos. “Se houver historial de herpes, é preciso atenção, porque há um risco de transmissão grande e é bastante perigoso para o recém-nascido”, avisa, aconselhando que, nestes casos, os beijos se restrinjam à cabeça, à barriga e aos pés do bebé. As mãos devem ser evitadas a todo o custo.

A especialista pede ainda que não se dêem beijos na boca, um hábito comum entre pais e filhos em algumas famílias. “Este tipo de beijo acarreta riscos exponenciados de transmissão de vírus e bactérias. A mesma coisa quando a criança tem uma ferida e os pais dão um beijinho ─ é uma porta de entrada para vírus numa zona fragilizada”, explica.

No entanto, os especialistas concordam que, caso a mãe esteja doente, não deve evitar contacto com o bebé, até porque a amamentação é protectora. Contudo, em caso de constipações ou infecções respiratórias, deve ser usada a máscara por parte da mãe. O resto das visitas deve evitar a todo o custo aproximar-se do bebé, quando estiver adoentado. “Este cuidado deve ser feito ao longo da primeira infância, mas sobretudo nos primeiros meses. Qualquer complicação respiratória num recém-nascido pode obrigar ao internamento”, avisa a enfermeira Carmen Ferreira, especialista em saúde materna.

A autora de Nascemos! E agora? acredita que já existe uma sensibilização para este assunto, sobretudo depois da pandemia, mas reconhece que possa ser especialmente difícil para os avós evitarem os beijinhos. “Não dá proibir os avós. A chegada de um bebé é um momento importante para eles. Como tal, a menos que haja uma patologia associada, a sugestão que costumamos dar é que dêem beijos à vontade na nuca”, aconselha.

O mesmo se aplica aos irmãos mais velhos, que, chegados a casa da escola, devem criar uma rotina de lavar as mãos e trocar de roupa para minimizar a transmissão de vírus. Já para os animais de estimação, membros também da família, deve ser garantido que o animal está vacinado e tem as patas higienizadas. Qualquer contacto próximo com o bebé deve ser supervisionado. “Este contacto é benéfico para o desenvolvimento do bebé e está comprovado que o contacto precoce com animais de estimação reduz o risco de intolerâncias e alergias”, afiança o pediatra Hugo Rodrigues.

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Enfermeira Carmen Ferreira Nuno Ferreira Santos

A importância do afecto

De resto, todo o afecto é bem-vindo nos bebés. “É um ponto central para os bebés se sentirem seguros e integrados. Para um bebé que não conhece manifestações de afecto, o aconchego e o cuidado é suficiente e fundamental para que se sinta em segurança. O beijo é para os adultos”, assevera Hugo Rodrigues. E Marta Ezequiel acrescenta: “O contacto físico é essencial para o bebé, é a forma como se sente regulado. Não podemos esquecer que, quando nascem, se sentem desamparados e o colo é essencial para uma boa vinculação e regulação emocional.”

Os cuidados devem ser partilhados e a pediatra do Centro do Bebé sugere que o banho fique a cargo do pai. “É um momento prazeroso e de vinculação com o pai. O bebé já reconhece a voz do pai enquanto estava na barriga”, diz. A pedopsiquiatra Margarida Crujo compara o afecto a uma “necessidade básica” como a alimentação e o sono. “Os bebés nascem dotados de características que promovem o desenvolvimento de uma ligação privilegiada com figuras de referência: eles sugam, choram, agarram, seguem com o olhar, sorriem. Do mesmo modo, os pais estão atentos, revelam disponibilidade, apresentam-se em continuidade, são previsíveis nos seus comportamentos.”

É que o carinho é uma forma de serenar “o estado de alerta e de sobrevivência” com que nascem os bebés, contextualiza a psicóloga Diana Alves, especialista em competências socioemocionais das crianças. “Se estes estados de alerta não forem alternados com estados de confiança vão ser impeditivos de nos desenvolvermos de forma segura”, explica. Assim, “todas as expressões de afecto, além de criarem o sentimento de segurança, são modelos de partilha afectiva e servem de directrizes para as crianças encontrarem a sua linguagem de afecto com os outros”.

“Sabemos que a ausência de afecto nos primeiros anos de vida poderá condicionar o desenvolvimento psicoafectivo e social dos bebés e das crianças, e isso pode continuar a ter um impacto na adolescência e na vida adulta, condicionando a psicopatologia”, observa a pedopsiquiatra Margarida Crujo, que salvaguarda que “um mau começo de vida do ponto de vista afectivo” não é uma sentença.

A psicóloga Diana Alves compara este contacto a uma espécie de estradas que se criam no cérebro nas primeiras experiências de afecto. “É como se estas experiências criassem as primeiras auto-estradas. Se nas primeiras necessidades não houver cuidados afectuosos, as crianças vão estar menos disponíveis a confiar nas relações. O sentimento que vai predominar é o de alerta, porque não há memória de que tenha sido cuidado”, explica.

De cada vez que, no futuro, for necessário confiar numa relação, é instintivo seguir a mesma auto-estrada. “A tendência é reforçar padrões – por exemplo, vou ficar na dúvida se alguém se está a rir comigo ou de mim. Interpretamos as interacções desse ponto de vista”, esclarece a investigadora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, lembrando que, frequentemente, estes padrões só se descobrem na idade adulta através da psicoterapia.

“Sabemos que a nossa ansiedade se deve muito a estes padrões de vinculação inseguros”, lamenta Diana Alves. Todavia, como refere Margarida Crujo não é uma sentença, e é possível “abrir novas estradas” com investimento. “As consequências de vinculações beliscadas nos primeiros anos de vida poderão ser atenuadas mais tarde no desenvolvimento por períodos de vinculação segura que funcionem como compensatórios”, sublinha a pedopsiquiatra.

Para evitarmos adultos ansiosos e com problemas de confiança, a aposta tem de estar no afecto desde o primeiro dia. E Marta Ezequiel termina com uma sugestão para o Dia da Criança: “O brinquedo favorito de um recém-nascido é a cara da mãe do pai. É uma forma de estimular o bebé.” Boas brincadeiras!

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