Entrada de vinho a granel no Douro – é proibido, mas pode-se fazer
Anúncio do IVDP pôs o Douro em alvoroço e a perguntar: afinal, o que muda? Já não era proibido? E no vinho regional não podia entrar 15% de uvas de fora da região? E a livre circulação de mercadorias?
Situações extremas exigem medidas extremas. E o absoluto desespero duriense, e dos durienses, pedia medidas drásticas. A anunciada proibição da entrada de uvas, mostos e vinho a granel na Região Demarcada do Douro (RDD) pelo Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, no passado dia 17 de Maio, é vista como uma medida positiva pelas associações que representam os viticultores durienses, aflitos, ano após ano, para entregar, a quem as queira, as suas uvas e será uma importante ajuda para reduzir, já na vindima de 2024, o excedente estrutural crónico, 50 mil pipas em média nos últimos anos — mais de um quarto do vinho que produz —, mas não chega para resolver a crise duriense.
Vamos por partes. Primeiro o número que impressiona. Segundo apurou o PÚBLICO, a região importou, na campanha de 2022/23, 33.284 pipas de vinho — “produto sem Denominação de Origem Protegida/Indicação Geográfica Protegida”, como foi apresentado pelo IVDP em sede do seu conselho interprofissional, o mesmo produto cuja entrada agora o instituto quer “proibir” —, o que equivale a 18,3 milhões de litros de vinho. Dessas pipas, 9640 é vinho que foi desclassificado, para vinho com certificação pelo Instituto da Vinha e do Vinho (vulgo, “vinho de mesa”), 5,3 milhões de litros. Sobram 13 milhões de litros de vinho vindos de outras partes.
O próprio instituto reconhece, numa resposta enviada ao PÚBLICO, que “Porto e Douro são denominações de origem, pelo que as uvas têm de provir exclusivamente da RDD”, mas para a produção de vinhos IGP (o chamado “vinho regional”) “a regulamentação europeia permite [que] 15% das uvas [sejam] de fora da região demarcada”. Vamos a esses 15%. Em 2023, foram comercializados 873.000 litros de vinho IGP (“Duriense“ e “Espumante Duriense”) — no total a região, só de vinho certificado (o resto é DOP), vendeu 116 milhões de litros de vinho. Algo como 13 milhões de litros nunca poderiam estar a entrar só nos 15% do IGP, essa fatia seriam 130.950 litros (238 pipas de 550 litros).
Algum entraria no vinho DOP. E podia entrar? Legalmente, não podia. Mas se os operadores quisessem fazê-lo entrar, conseguiam, porque, como se diz no sector, "o vinho não fala". E ainda conseguem, apesar da proibição. O enquadramento legal é de “2009, não tendo sofrido alteração”, como esclarece o IVDP, que, na sua “circular, veio [apenas] alertar para a regulamentação vigente”. O artigo 40.º do estatuto das denominações de origem e indicação geográfica da RDD, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 173/2009, de 3 de Agosto, diz que, “salvo autorização do IVDP, (...) é proibida a entrada na RDD ou no EG [Entreposto de Gaia] de uvas e mostos” e “sobre os vinhos e produtos vínicos ou afins não abrangidos” pelo dito estatuto, ou seja, que chegam de outras regiões ou países produtores de vinho, estipula que “podem entrar ou encontrar-se na RDD ou no EG mediante prévia autorização do IVDP”.
A proibição de há 15 dias não é, assim, nova. O que mudou em meados de Maio foi que agora haverá mais critério nas autorizações concedidas, no geral, aos operadores para importarem vinhos oriundos de outros locais que não a RDD. O IVDP “aprecia os pedidos de entrada na RDD à luz da protecção das denominações de origem protegidas da RDD, da defesa do seu prestígio e da garantia da genuinidade dos vinhos DOP da RDD”, justifica o instituto. Acrescenta que “o objectivo da circular foi o de informar os agentes económicos da legislação em vigor e, nos casos das autorizações, estabelecer condições de armazenagem e procedimentos para as comunicações de movimentos, entradas e saídas de vinho – ou seja, se estiver em causa o prestígio das DOP Porto e Douro ou a sua genuinidade, o IVDP poderá proibir a entrada na RDD”.
Só que a tal circular, a que o PÚBLICO teve acesso, não enumera sequer “condições” ou regras. Comunica apenas às empresas que, “no respeito pela lei e ponderando, designadamente, os riscos para a defesa da genuinidade dos vinhos com DOP ou IGP da RDD, [o instituto] poderá autorizar previamente a referida entrada, estabelecendo, para cada pedido, as condições a observar pelo agente económico”.
Sobre as “excepções legalmente consagradas”, a que a mesma comunicação se refere e que intrigou muitos operadores na última semana e meia, o IVDP dá os exemplos da “uva de mesa” e do “trânsito de vinho que atravessa a RDD”. Na legislação de 2009 “não se consagra, como regra, uma proibição absoluta”, faz questão de sublinhar o IVDP. “São permitidas excepções, a ponderar em cada caso concreto”, sempre pesando dois “interesses”, “o prestígio das DOP da RDD enquanto direitos de propriedade industrial e a liberdade de concorrência (in casu, a liberdade de circulação de mercadorias)”.
A propósito da livre circulação de mercadorias, o Regulamento da União Europeia N.º 1308/2013, de 17 de Dezembro de 2013, que veio estabelecer uma organização comum dos mercados dos produtos agrícolas, “prevê algumas medidas de intervenção no mercado”, assegurando o instituto público presidido por Gilberto Igrejas que está “em constante diálogo com os organismos do sector tutelados pelo ministério sobre esta matéria”.
A defesa do “prestígio mundial” das DOP durienses justifica, diz o instituto, “medidas particularmente exigentes na defesa da sua genuinidade e autenticidade, sob pena de perda de valor”, protegendo-se com a recente chamada de atenção aos operadores da região também a “confiança do consumidor”. Essa defesa, a “defesa da qualidade” dos vinhos e a “garantia da genuinidade dos mesmos” serão “os critérios que irão pautar as decisões do IVDP”, que disponibiliza uma “plataforma de comunicação através da área reservada” do seu site para os pedidos de “autorizações excepcionais”.
Na resposta enviada ao PÚBLICO, o instituto sublinha que o “incumprimento [das regras] poderá ser qualificado como crime ou contra-ordenação nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 213/2004, de 23 de Agosto, que estabelece o regime das infracções relativas ao incumprimento da disciplina legal aplicável à vinha, à produção, ao comércio, à transformação e ao trânsito dos vinhos e dos outros produtos vitivinícolas e às actividades desenvolvidas neste sector”.
Decisão vem tarde, mas é boa, diz a produção
As associações do lado da produção e dos viticultores aplaudem a acção do IVDP, mas avisam que não chega. Há “seguramente um ano e meio” que a Associação dos Viticultores Profissionais do Douro (Prodouro) levava o assunto ao conselho interprofissional e, conta o seu presidente, Rui Soares, a resposta era sempre a mesma: “Juridicamente não era possível fechar a região.” Até ser. Apesar de surpreendido pela circular, para o presidente da Prodouro é de “enaltecer a decisão” do instituto e de esperar que a mesma sirva de exemplo a outras regiões. “É preciso que as outras regiões também lutem pela defesa das nossas DOP. Se não, a partir de agora, poderão ficar em concorrência desleal para connosco.”
A esse propósito, e porque o PÚBLICO (que primeiro interpelou o Ministério da Agricultura e Pescas, que remeteu o assunto para o instituto público) perguntou se mudava alguma coisa noutras regiões onde a entrada de vinho de fora também se afigura um problema, o IVDP refere que “da análise” do Decreto-Lei n.º 61/2020, de 18 de Agosto, que estabelece a organização institucional do sector vitivinícola e o respectivo regime jurídico, “resulta apenas que o organismo certificador tem de efectuar controlos que assegurem a genuinidade das matérias-primas utilizadas”.
Voltando ao Douro, o facto de “a IGP permitir os 15% [de uvas de fora da RDD] já é uma fragilidade”, entende Rui Soares. E sublinha: “Na DOP Douro era 0%.” “Acontece que, como o vinho não fala, estando num depósito, e ainda por cima comprado em Espanha a 30 ou 40 cêntimos o litro, era uma tentação. Lotear vinho de fora da região, nomeadamente espanhol, com o do Douro para baixar o preço e subir a margem é apelativo”, explica. “Dissemos repetidamente ao IVDP que estava a fugir do controlo, que esta era uma questão que tinha impacto.”
“O IVDP tardou em tomar medidas, mas finalmente foi tomada uma decisão. Isto era grave e tinha de se pôr um travão a esta questão”, sentencia Rui Soares. O dirigente da Prodouro enumerou as outras medidas que, para a produção, podem ajudar a controlar o excedente estrutural – mexer no rendimento por hectare, e aí já houve uma decisão, em Abril, por parte do conselho interprofissional no sentido de reduzir, já este ano, o rendimento máximo por hectare das vinhas dos 55 hectolitros para os 45 no vinho tinto e dos 65 hectolitros para os 60 no vinho branco. A produção votou contra por considerar na altura “redução generalizada na região demarcada, de forma cega e sem critério”. A “destilação de excedentes para produção de aguardente para utilizar no vinho do Porto” — a região consome aguardente correspondente a cerca de 240 mil pipas de vinho. A “colheita em verde”, uma medida que Espanha está a levar a cabo e em que a ajuda ao agricultor é directa (o viticultor recebe pelas uvas que deita ao chão). E, em última análise, o “arranque de vinha”. Essa deve ser a última das medidas, em caso de todas as outras falharem, porque é estrutural, não é conjuntural”.
Para Fernando Alonso, o arranque de videiras é “fim de linha”, deve ser mesmo o último recurso. Quanto ao resto, “a produção está alinhada”. Sobre a circular do IVDP diz este dirigente que a proibição, ou, antes, um controlo mais apertado “era algo desejado há muito tempo”. “Não havia controlo nenhum daquilo que entrava para a região e o que entrava estava a provocar um desequilíbrio naquilo que é a sustentabilidade da região”, comenta. Está nas direcções da Associação da Lavoura Duriense e da União das Adegas Cooperativas da Região Demarcada do Douro (Uniadegas), mas salvaguarda que fala como viticultor e dirigente da Adega Cooperativa do Vale da Teja.
“Vemos a medida como bastante positiva, defendemo-la na íntegra desde o início. Houve, finalmente, vontade política de tratar o assunto de forma diferente.” A mesma vontade política que, querendo, conseguirá arranjar meios para fiscalizar os camiões-cisterna (no caso do vinho) e os TIR (no caso das uvas) nas estradas da RDD quando chegarem as vindimas, faz notar Fernando Alonso, numa alusão à insuficiência de fiscais e à dificuldade do IVDP em contratar mais recursos humanos.
“Em boa hora foi possível e vamos perceber porque só foi agora e não pôde ser no ano passado ou há dois anos”, comentou, logo nos dias a seguir à divulgação da circular do IVDP, o presidente da Federação Renovação do Douro. Ouvido pela Lusa à margem de uma audição na Comissão de Agricultura e Pescas no passado dia 22, Rui Paredes disse que a medida é “fundamental”, porque “o movimento de entrada de vinhos de fora da região estava a empurrar os preços para baixo”.
À boca pequena, há muito que a região aponta o dedo às adegas cooperativas, não todas, a três ou quatro num total que na RDD rondará hoje uma dúzia. Essas estarão preocupadas e o PÚBLICO sabe que o IVDP tem feito reuniões com esses operadores. Para os sensibilizar, para lá da circular, que o princípio é mesmo proibir, para bem de todos. “Quanto mais elevado for o valor das DOP Porto e Douro, maior o rendimento dos viticultores. Incrementará o preço da sua uva”, escreve, numa apreciação geral, o instituto ao PÚBLICO.
É, mas há outro perigo à espreita, chegando Agosto/Setembro. “Estamos realmente preocupados com outra questão nesta vindima: com a dispensa de muitos viticultores por parte dos operadores, a pressão sobre as adegas cooperativas vai aumentar”, alerta Alonso.
Notícia actualizada dia 31/05/2024, às 11h19, no 4.º e 5.º parágrafos clarifica-se que legalmente não podia, nem pode, entrar na região vinho a granel para ser usado na produção de vinho DOP, apesar de isso, na realidade, acontecer.