A língua portuguesa enquanto “activo maior do nosso povo”
– É estúpida, mas coerente. Fernando Namora, O Trigo e o Joio
1. Durante a campanha eleitoral para as recentes legislativas, houve dois artigos de opinião que atraíram de forma particular o meu interesse. No primeiro, José Pacheco Pereira (PÚBLICO, 17/2/2024) chamava a atenção para o problema da São na campanha do PS, devido a um cartaz com uma foto de Pedro Nuno Santos e um incentivo que, ainda hoje, arrepia quem tiver presente e interiorizado o sistema grafémico do português europeu: “MAIS AÇÃO”. Verdade seja escrita, não é novidade a apresentação de “a São” e *ação como princesas da homofonia. No entanto, a denúncia de Pacheco Pereira foi certeira e feita no momento mais oportuno.
No segundo artigo, José Manuel Barata-Feyo (PÚBLICO, 5/3/2024) indicava um segundo problema: o do provincianismo dessa mesma campanha, sem discussão de temas ligados quer à política internacional, quer à política externa de Portugal. Aparentemente, nesta campanha para as eleições europeias, tem havido um esforço para se sair de uma lamentável ilusão de auto-suficiência que grassa em Portugal, onde se dá uma prioridade absoluta ao pitoresco nacional e amiúde se ignora o que se passa em redor. Exactamente, em redor. Contudo, estando o segundo problema em vias de resolução, o primeiro continua à espera de alguém que lhe preste atenção. E de alguém que se mexa.
Há dias, assisti ao Expresso da Meia-Noite, um programa da SIC Notícias, no qual participavam dois adeptos do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90): Pedro Santana Lopes e Ascenso Simões. O tema desse programa eram as iniciativas e os actuais desafios do Governo de Luís Montenegro. Discutia-se uma pletora de temas, como, entre outros, a capacidade de sedução do Chega para chegar ao poder a reboque do PSD, os entendimentos desencontrados entre PS e PSD ou a “ausência de capacitação anterior para o exercício da função”.
Vi o programa até ao fim e tive imensa pena de a presença de Santana Lopes em estúdio não ter servido de inspiração ao moderador, Bernardo Ferrão, para a pergunta que se impunha: porque é que Santana Lopes escreveu “agora facto é igual a fato (de roupa)”? Recorde-se que Santana Lopes foi quem assinou o AO90 e, anos mais tarde, anunciou na Assembleia da República o regresso do monstro. Além disso, intervém abundantemente sobre o tema e escreveu “agora facto é igual a fato (de roupa)” (Sol, 10/2/2012). Até hoje, Santana Lopes não se retractou relativamente ao “agora facto é igual a fato (de roupa)”, nem deu opinião sobre as consequências desse seu erro. Porquê? Não se sabe.
É francamente esclarecedora a vista grossa feita pelos políticos portugueses no poder a actualíssimas aberrações ortográficas, como “ponto de *contato do Município junto do serviço” (Diário da República, 13/05/2024) ou “pelo *fato de se encontrarem ainda razoavelmente preservados” (Diário da República, 14/05/2024). É uma vista grossa inaceitável, mas coerente com a feita aos pareceres dos professores Ivo Castro e Inês Duarte (2005), que recomendavam explicitamente a não ratificação do Segundo Protocolo Modificativo, mantendo-se o (então e agora) actual texto do AO90. Todavia, há quem não tenha feito vista grossa aos pareceres. Efectivamente, há no Governo actualmente em funções quem tenha votado contra esse Segundo Protocolo Modificativo.
2. Entretanto, como habitualmente, a língua portuguesa estará ausente dos temas discutidos na campanha para as eleições europeias. Em Portugal, a língua portuguesa é muito falada em momentos de circunstância e pouco discutida além da espuma dos dias, salvo honrosas excepções.
Por exemplo, o primeiro-ministro escreveu recentemente que «a língua portuguesa é *ativo maior do nosso povo» (PÚBLICO, 5/5/2024). De facto, é importante que este “activo maior do nosso povo” seja valorizado e não apenas conversa para cidadão ler. E esta minha adenda é necessária, porque, ao contrário de outros países, Portugal é um país com uma política de língua, materializada em estruturas de qualidade, como o Camões, I.P. (dependente do Ministério dos Negócios Estrangeiros), na presença em instâncias como a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, na promoção (como vimos recentemente) do Dia Mundial da Língua Portuguesa (5 de Maio), na vontade de fazer chegar a língua com a merecida dignidade à Organização das Nações Unidas e, claro, na imposição aos seus cidadãos do nefando AO90.
Convém que o primeiro-ministro de um país com uma política de língua expressa (e não meramente implícita) vá além do estabelecimento, no papel, de objectivos no médio prazo e promova activamente a utilização (e não só a “promoção”) da língua portuguesa pelos membros do seu Governo, quando se deslocam ao estrangeiro e comunicam com homólogos ou pares. Espera-se que (na função de presidente do PSD) instrua imediatamente os futuros eurodeputados da sua cor política quanto ao que hão-de fazer para a valorização deste “activo maior do nosso povo”. Para valorizarem este activo, poderão, por exemplo, ouvir interpretação portuguesa e intervir em português no Parlamento Europeu e não só. Convém também que presidentes, secretários-gerais e coordenadores das restantes cores partidárias façam o mesmo em relação aos seus futuros eurodeputados. Porque, de outro modo, estaremos perante um exercício estéril. Com conversa para cidadão ler, como é óbvio, não vamos lá.