Como a música nos une e pode separar

É assim que a música feita em Portugal dá voltas ao mundo e os portugueses pelo mundo dão voltas, com ela. Foi com tristeza que, na Eurovisão, percebi que a música também nos pode separar.

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iolanda na grande final da Eurovisão 2024 Leonhard Foeger / REUTERS
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Partilha um dos professores da escola onde dou aulas: “Uma das minhas memórias de infância é estar em casa da minha avó a ver a Eurovisão na sua televisão antiga, e estarmos a noite toda a torcer por músicas cantadas em idiomas que não conhecíamos.” Após uma reunião de preparação do final do ano lectivo, passámos a partilhar histórias, música e copos numa sala da escola, que fica em Gdansk, no norte da Polónia, onde todos os professores (tal como eu) vêm de contextos muito diferentes.

Confesso que uma das músicas que mais marcou a minha infância, lado a lado com o tema de abertura das Winx, foi Molitva – vencedora da Eurovisão 2007. Tinha sete anos e, com a canção interpretada pela sérvia Marija Šerifović, aprendi que a música era universal, que mesmo não percebendo uma única palavra entoada aquela melodia deixava-me profundamente emocionada. Hoje quando revejo no YouTube essa performance continuo sem compreender sérvio e continuo a sentir arrepios.

Quantas vezes, por este mundo fora, quando digo que sou portuguesa, me respondem com “eu adoro o Salvador Sobral”? Muitas! Tantas que uma amiga das Honduras, após ouvir o nosso único vencedor da Eurovisão, decidiu aprender português. Essa é a beleza da música e da forma como celebra e promove a cultura de todos os povos.

Foi a dança que uniu a directora da minha escola, que nasceu e cresceu na Bielorrússia, à sua companheira, e conta-nos que já estiveram em Portugal para o festival Afro Nation, no Algarve. Inspirado pelas suas palavras, um dos meus colegas, descendente de uma de milhares de famílias polacas que a União Soviética deportou para o Cazaquistão, no início da Segunda Guerra, e que regressou à Polónia há uma década, liga o telemóvel à coluna de som da sala e começa a ouvir-se Kalemba, dos Buraka Som Sistema. Estupefacta, junto o meu corpo ao movimento que toma conta da sala e todos dançamos ao ritmo de Wegue Wegue. É assim que a música feita em Portugal dá voltas ao mundo e os portugueses pelo mundo dão voltas com ela na pista de dança.

A música sempre teve essa característica mágica de nos unir. No caso da Eurovisão, não se trata apenas de um espaço com capacidade para juntar vários países que partilham um pedaço da sua cultura, mas também é um espaço seguro onde a diferença entra e é respeitada, onde se celebram identidades disruptivas.

E, de repente, num espaço promotor da união, nesta edição de 2024, o apelo à paz feito pela concorrente portuguesa iolanda tornou-se controverso. Porque as suas unhas estavam pintadas com o padrão do lenço keffiyeh, a organização da Eurovisão tenta reescrever a história, omitindo a performance de Grito na final, substituindo-a em todas as plataformas oficiais pela da semifinal.

Mas a reescrita da história não se fica por aqui, sabemos também que o som da transmissão foi editado de maneira a substituir o vaiar do público à artista israelita por aplausos. A mesma artista que já disse que quando regressar a Israel vai cumprir o serviço militar e juntar-se às IDF — o serviço militar é obrigatório para homens e mulheres, mas a possibilidade de ser objector de consciência existe, mesmo que penalizante para quem a defenda.

Assistimos a uma Eurovisão com dois pesos e duas medidas. Afinal, os artistas podem ou não ter pensamento político e expressá-lo? Não é a arte sempre política? E como é que aceitamos a censura e a reescrita da realidade num festival europeu que sempre hasteou bandeiras de liberdade? Foi com tristeza que, sábado à noite, percebi que a música também nos pode separar.

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