Big Boys podem chorar — e fazer rir — na nova série da Filmin

Seis episódios facilmente devoráveis sobre sexualidade, perda ou saúde mental sob a forma de comédia. Mais uma salutar dose de ficção focada em homens mas que não recita a ladainha do costume.

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Dylan Llewellyn e Jonathan Pointing DR
Dylan llewellyn ‘Jack’  & Yemi’ Olisa Odele night out
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Dylan Llewellyn e Olisa Odele numa cena da série DR
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Há 45 anos, os Cure lançaram o seu tema mais conhecido — sim, Boys don’t cry faz 45 anos em Junho, é deixar a informação assentar e lidar. E, 45 anos depois, aparece uma série como Big Boys na televisão que é precisamente sobre lidar. Com a vida, com a sexualidade, com a saúde mental e com a divina comédia que é estar no planeta Terra. Big Boys estreou-se há dias na Filmin e só lá mora a primeira temporada, sendo que a segunda se estreou há uns meses no Reino Unido. A segunda leva de episódios tem de vir para Portugal o mais rápido possível.

Esta é uma comédia de seis episódios de cerca de 30 minutos sobre dois amigos, e que se baseia em parte na vida do humorista britânico Jack Rooke. Não é uma comédia de rir alto, é uma comédia de chorar (a rir?) um bocadinho e isso é OK, como é muitíssimo OK que estes dois amigos explorem temas clássicos das histórias de “coming of age” sem se perderem nos tropos do tímido, do giro, da feminista zangada, da tonta, das piadas com gays (e não sobre gays, e há uma diferença), e que haja um narrador — o próprio Rooke — a conduzir o espectador série fora.

Numa altura em que são precisos argumentos para subscrever serviços de streaming, a estreia de séries como esta pode facilmente entrar na argumentação. Porque, independentemente das muitas estrelas que os críticos lhe deram (e foram sempre ali entre as quatro e as cinco numa escala de cinco), Big Boys torna o espectador calmamente guloso — apetece ver mais, o que nos dias que correm é mesmo simpático. Uma série que não é nem exige trabalhos de casa é uma bênção.

O espectador quer saber o que une Jack e Danny, porque o que os separa já é óbvio. Jack é homossexual mas não revelou isso ao mundo, é tímido, enfiado e está de luto. Danny é o seu colega de alojamento no primeiro ano da universidade e é falador, bem-parecido e ansioso por arranjar companhia feminina. Rooke encontrou em Dylan Llewellyn o actor para o interpretar e Jonathan Pointing é o atlético Danny. E não, não têm de se pegar, Jack não tem de ser alvo de bullying, Danny não tem de ser arrogante. E, sim, estamos em 2024, 45 anos depois de Boys don’t cry e de demasiada comédia que escolhe os mesmos alvos (o chamado "punching down"), e Jack Rooke está a falar de si próprio com honestidade.

Big Boys é uma comédia dramática semiautobiográfica, em que estou a tentar fazer um programa doce sobre a amizade, com algumas piadas de mau gosto, engraçadas e mazinhas, e um sentimento subjacente sobre a importância da família e da família escolhida e como os amigos podem muitas vezes tornar-se tão importantes como os membros da família”, disse Rooke ao Channel 4, o canal que acolheu a série em 2022. A primeira temporada correu tão bem que a segunda já foi exibida (“Tão engraçada que quase me engasguei”, titulou a crítica do diário britânico The Guardian Rebecca Nicholson).

Há piadas ou referências que podem passar ao lado de quem não consome televisão linear britânica, mas é a vida. Não é assim tão importante. É importante tomar a medicação, saber pedir ajuda, ter amigos que se preocupam, não fazer personagens de cartão e saber que Big Boys, como esclarece, e bem, Jack Rooke na mesma entrevista, não é só “uma série gay ou só uma série sobre saúde mental”. Aliás, o que lhe dá mais gozo é saber a reacção dos homens heterossexuais mais tipificados dentro das vetustas normas da masculinidade e que descobrem naqueles amigos, e no seu avatar mais provável, Danny, fragilidades que hoje começam a fazer parte do discurso público mais alargado.

Tal como Baby Reindeer, o fenómeno que continua a colher espectadores na Netflix e se foca em abuso sexual e perseguição obsessiva no masculino, estes homens estão a falar e vale a pena ouvi-los porque não estão a repetir a mesma ladainha do costume. Tal como o autor de Baby Reindeer, Rooke fez uma série baseada em acontecimentos reais e esteve no Festival Fringe de Edimburgo a falar, em versão comédia stand-up, sobre luto. Duas vezes. Agora fez uma série que abre uma janelinha para a vida dos jovens de 18-20 e tal anos na última década e como navegam muito melhor do que em 1979 as questões da identidade (de género), orientação (sexual), trabalho (sexual e não só) e da auto-reflexão.

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